terça-feira, 21 de outubro de 2008

Pode haver liberdade para humilhar?
Jornal Público (20.10.2008) - Rui Moreira (Economista)

Apeteceu-me interromper a cerimónia, chamar-lhes pinguins viúvos e urubus e incentivar os caloiros a vingarem-se...

Há dias, à porta do Instituto Português de Oncologia, deparei com uma grande algazarra, que desrespeitava a proximidade do hospital. Tratava-se de uma daquelas miseráveis cerimónias iniciáticas a que se convencionou chamar de praxe. No caso, um grupo de jovens, envergando t-shirts com dizeres aberrantes, autoflagelava-se dando saltos idiotas e gritando palavras de ordem humilhantes, amestrados por um grupo de "gauleiterzinhas" com ar pedante. Ao vê-las, desengraçadas, disformes e desfeadas pelo negro das capas e pelas meias de vidro, lembrei-me de Jô Soares, apeteceu-me interromper a cerimónia, chamar-lhes pinguins viúvos e urubus de galocha e incentivar os caloiros a vingarem-se...

Esta irritação parecerá excessiva mas percebi, pelo que ouvi à minha volta, que não era o único a quem aquele espectáculo degradante incomodava. Aliás, incomoda também o ministro, que recentemente fez comentários oportunos e severos sobre o tema, advertindo que não toleraria mais excessos. Infelizmente, disse-o em vão, porque a hierarquia das instituições de ensino superior é cúmplice das associações de estudantes e incapaz de pôr cobro a esta prática. Veja-se o caso do infame Instituto Piaget, em que os abusos e excessos das praxes foram conhecidos através da denúncia de uma ex-aluna, onde a direcção começou por aprovar uma directriz que proibia as praxes durante a recepção aos caloiros mas logo a seguir recuou, submetendo-se a uma auto-intitulada Comissão de Tradições Académicas que, imagine-se, ameaçara com uma manifestação...

Detesto falsas tradições. Não gosto sequer das tunas, porque, com raras excepções, não têm piada nos seus exibicionismos e nas suas zarzuelas néscias que nos impingem em cerimónias públicas e eventos sociais. No caso da capa e batina, não se trata apenas de uma questão de estética, porque qualquer pessoa tem o direito de se mascarar como entende: o que me aflige e assusta é que muitos dos que as envergam não percebam, sequer, as origens obscurantistas do traje e que este constitua hoje um uniforme obrigatório em práticas violentas e humilhantes.
As praxes são, por tudo isto, uma prática a banir. Não proponho, naturalmente, que sejam proibidas, porque o país já não aguenta proibições que depois não são acatadas e porque isso só contribuiria para as incentivar na clandestinidade. Mas é indispensável que os caloiros saibam que elas não são obrigatórias e que sejam apoiados no sentido de se sentirem protegidos e de poderem denunciar, se for o caso, quem cometer algum abuso.

A integração dos recém-chegados à universidade não é compatível com a humilhação e a violência, nem se pode perpetuar o princípio da hierarquização da barbárie por antiguidade. Recordo-me da forma como fui recebido, em Inglaterra, quando lá cheguei para estudar. Lembro-me do apoio da Student's Union, dos Serviços Sociais da Universidade e dos tutores. Gostava que em Portugal, onde imitamos tanta coisa má que nos chega do estrangeiro, também conseguíssemos, de quando em vez, replicar o que é bom. Principalmente, tudo aquilo que tem a ver com as liberdades.

http://jornal.publico.clix.pt/

3 comentários:

Ponnette disse...

Este artigo de Rui Moreira toca em pontos essenciais. Concordo com a muitas das coisas que diz: a estranheza perante tais circos que existem nos nossos dias e nas ruas em que passamos; a necessidade do fim disto - mas lembrando que proibir não é solução pois não serve para nada; a incompatibilidade destes pseudo-ritos com a sociedade em que queremos viver.
Ainda bem que os meninos agora já vão para o meio da rua fazer estas palhaçadas: ao menos assim, outros sabem o que se passa dentro das faculdades deste recuado país.

Anónimo disse...

Ainda bem que re-publicaram esta crónica do Jornal Público.
No original o artigo não tinha sublinhados ou cores, foram acrescentados por mim, no meu blog.
De qualquer das formas, bem hajam por o re-publicarem aqui, e manterem activa esta causa. Estranhamente minoritária!...

Cumprimentos,

Amílcar A.
http://anti-praxe.blogs.sapo.pt/

Filipa disse...

Alguém perguntou aos alunos do instituto se queriam sair dali? Eu também saltei, corri, brinquei e gritei com os meus colegas quando entrei na faculdade e posso-vos dizer sem a menor sombra de dúvida que foi a semana mais divertida de sempre, depois disso foi entrar na realidade dura de quem tenta tirar um curso, os trabalhos, os testes, os exames, as noites sem fim no meio dos livros... Quem me dera ser caloira outra vez, acho que este ano me vou infiltrar e estar do lado dos caloiros mais uma vez, é muito mais divertido que ter de fazer inquéritos, arranjar t-shirts e comida para mais de 70 pessoas sem que elas tenham de pagar...