segunda-feira, 12 de abril de 2010

Profissão: estagiário!

Se o presente é a indiferença expressa sob a forma de Tradição Académica, o futuro deveria ser preocupante.
Reprodução integral do artigo da versão online do Expresso, por Raquel Albuquerque, que se pode visitar aqui.
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Saltar de estágio em estágio durante anos é cada vez mais frequente à entrada no mercado de trabalho. São histórias de quem está disposto a sofrer para ter um lugar ao sol.

Servir cafés, tirar fotocópias, fazer de paquete ou separar envelopes foram, em tempos, os maiores receios na vida de um estagiário. Mas se perguntarmos hoje a um dos mais de 30 mil destes "trabalhadores em curso" que existem no país o que mais teme, a resposta será provavelmente outra: ser eternamente estagiário.
Para quem já fez de tudo, tirar fotocópias seria simples. Três anos depois do fim do curso de Cinema, o Nuno já passou por um clube de vídeo, uma empresa de aluguer de material de imagem, pequenos trabalhos em publicidade, até chegar à produtora onde está agora num estágio de nove meses como assistente de imagem. "Sempre me dediquei a tudo o que fiz e sei que tenho capacidade para mais. Pergunto-me: 'O que ando a fazer mal?'"
Saiu do Conservatório em 2008 e até ao último dia de faculdade, confessa, "preferia nem pensar no que estaria para vir". Enviou dezenas de vezes o currículo, sem obter resposta. Até encontrar um primeiro estágio, "onde me pagariam alguma coisa". Nunca chegou a começar. A empresa exigiu um protocolo com a universidade para que fosse um estágio não-remunerado. Como Nuno já tinha acabado o curso, foi recusado. Voltou ao zero, mas não parou. "O pior de estar desempregado é ficar em casa. Aí, sim, é horrível. Eu tinha de sair, nem que fosse para falar com alguém." Arranjou um trabalho num clube de vídeo, enquanto um dos amigos aceitava ser motorista privado. Ao fim de um mês, decidiu agarrar-se a oito meses não-remunerados numa empresa de aluguer de equipamento de imagem. "Limpava, abria, arranjava o material. Tornei-me muito competente."
Oito meses depois, arrumava o material e partia para outro estágio. Desta vez numa produtora, onde trabalha 12 horas diárias, a 300 euros por mês e com recibos verdes. Se não vivesse com os pais, diz, seria impossível sobreviver. "Se pagasse renda, comia latinhas de feijão o resto do mês." Recorda os tempos de faculdade, em que ficava sem comer para poder comprar um mp3. "Isso eram coisas que fazia com 19 anos. Acontecer-me agora, aos 23, deixa de ter piada."
Confessa que gostaria de viver sozinho ou ter um carro, mas empurra esses desejos para um futuro que espera próximo. "Consigo gastar só 150 euros por mês. A minha liberdade custa 22 euros: é o passe da Carris."

A saga dos advogados
É com uma remuneração menos esticada que vive o Pedro, advogado estagiário. Durante seis meses recebeu 150 euros. "Quando saí da faculdade, a vontade de trabalhar era tanta que me era indiferente." Está numa sociedade de advogados em Lisboa e a pouco tempo de fazer o exame na Ordem dos Advogados, que poderá pôr fim ao tempo de estagiário. Licenciou-se em Direito, fez Erasmus em Roma e lembra que foi fácil conseguir o estágio. Três anos depois, trabalha entre 10 a 11 horas por dia e ganha 600 euros. Recorda a fase passageira do trabalho administrativo, "inerente ao cargo de advogado estagiário". Digitalizar documentação ou fazer deslocações na rua são exemplos, "embora nunca tenha chegado a paquete profissional", confessa, a rir.

Aos 29 anos, diz não viver muito preocupado com a sua posição. "Um dia perguntei à minha mãe se eu iria passar fome caso não saísse disto. Ela disse-me que não. Portanto, estou calmo." Vive sozinho em Lisboa, mas não paga renda nem tem despesas (pagam os pais). O que ganha chega para os gastos. Mas há uma proibição para qualquer estagiário. "Nunca dividir o que se ganha pelas horas que se trabalha, pois pode ser perigoso." O perigo é que a conta dê um resultado inferior a um euro. "E a consequência é poder querer ser 'homem-a-dias'..."

Muito trabalho, pouco dinheiro
É um perigo que a Catarina, aos 22 anos, não corre. Licenciada em Ciências da Comunicação, fez um estágio não-remunerado de um mês num jornal diário ainda durante o curso. Durante 16 meses respondeu a todos os anúncios para jornalista, sem obter qualquer resposta. Acabou por ser recepcionista e pouco depois optou por trabalhar na Zara. "Era passageiro. Não aguentava estar sem fazer nada." Conseguia 220 euros por mês, a trabalhar quatro horas diárias.
Em Novembro passado, encontrou um estágio numa revista. Ficou delirante. Durante três meses foi jornalista e trabalhou sem horários, sem gozar fins-de-semana nem feriados, se necessário. Tudo sem nada receber. Sabia, à partida, que tudo acabaria no último dia de estágio. "Conseguia sentir-me bem, mesmo assim." Ao fim dos três meses, surgiu uma oportunidade. Outro estágio com uma data de saída previamente definida. "Tenho a noção de que estar ali eu ou vir outra pessoa estagiar a seguir é totalmente indiferente."

Em busca de um lugar
Há milhares de licenciados à procura de emprego, e o estágio é uma esperança. Em Junho de 2009, eram 37.692 os desempregados com formação superior, diz um relatório do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES). Em Dezembro de 2009, o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) registava 22.266 estágios profissionais, excluindo os estágios curriculares a decorrer com base em protocolos com universidades.
Defendendo que um estágio é sempre uma oportunidade, Amândio da Fonseca, presidente da EGOR (empresa de recursos humanos), lembra: "Estágio faz-se uma vez." "Ao adquirir competências num primeiro estágio, parte-se para um emprego. Não é natural que seja de outra forma." Um estágio deverá "ser favorável" para a entidade empregadora e para o estagiário. Mas há diferenças de empregabilidade consoante a formação. "A Matemática é a fronteira, é a disciplina que empurra muitos estudantes para outros cursos, que por sua vez vão libertar mais gente para o mercado de trabalho", explica. "Tudo acontece como consequência do passado escolar." De acordo com o mesmo relatório do MCTES, dos cerca de 38 mil licenciados sem emprego, 20% eram de Ciências Empresariais, seguidos das Ciências Sociais e do Comportamento (13%), Engenharia e Técnicas (9%), Formação de Professores e Ciências da Educação (8%) e Artes (6%).
As perspectivas são realmente mais positivas para quem está a acabar uma licenciatura em Engenharia Civil, como é o caso da Sofia, 24 anos. "Não temos estágio obrigatório, portanto por vezes começamos logo a trabalhar, e as empresas vêm procurar-nos à faculdade." Confessa estar "muito perdida" em relação ao que quer fazer. Optou por estagiar seis meses num banco, como experiência de trabalho. Foi "bem remunerado", apesar das funções distantes da engenharia.
Para um recém-licenciado, há um conselho a dar, segundo Amândio da Fonseca: "Podem tentar uma reconversão para novas profissões, há pequenos cursos que o facilitam." Foi essa a solução que o Francisco, 25 anos, encontrou, meses depois de se licenciar em Direito. Dois meses de estágio numa sociedade de advogados foram suficientes para perceber que afinal "não queria fazer nada daquilo no futuro". E esse foi o principal motivo da mudança. Gostava de publicidade, inscreveu-se num curso para copywriter e começou a ir às aulas à noite. Meses depois pedia para acabar o estágio em advocacia.
Conseguiu um primeiro estágio numa agência de publicidade, a ganhar perto de 500 euros. Satisfeito por ter escapado à vida de advogado, saltou para o terceiro estágio numa das maiores agências de publicidade, onde está agora. "É natural que no início da carreira as coisas sejam complicadas. Se saltei de estágio foi porque não sabia o que queria." Com a possibilidade de ficar na agência, revela que o pior seria voltar ao zero. "Estagiar outra vez seria desmoralizante."

Percursos diferentes
Mas os percursos podem ser totalmente diferentes. Aos 21 anos, a Ingrid passou de estudante a estagiária no mesmo dia. Horas depois do último exame da licenciatura em Publicidade e Marketing, caminhava para a primeira entrevista de trabalho. "Foi o primeiro currículo que enviei." Aceite na agência de marketing digital, começou por ganhar 150 euros, aumentados entretanto. "Sei que tive sorte. Só não tive férias desde então", brinca. Vive em casa dos pais e consegue pôr de parte algum dinheiro. "Se vivesse sozinha não dava." Depois de chegar a gestora de projecto, confessa que a perspectiva que tem "por enquanto é optimista".
Já distante do primeiro estágio, a Ivone tem uma opinião diferente. "Deixei de fazer planos a longo prazo. Estabeleço metas de um ano, o tempo de cada estágio." Terminou o curso em 2007 e lançou-se num estágio num ateliê de arquitectura. Mas depois de ter feito Erasmus, tinha ficado a vontade de voltar a saltar fronteiras. "Estava na hora de sair outra vez. Até porque essa era a única forma de ser remunerada." Barcelona acolheu-a para o segundo estágio, que valeu pela experiência, mas "nos últimos dois meses não tinha muito para fazer". Era momento para mais uma decisão. "Olhei para o mapa e tinha duas hipóteses: seguia em frente, para lá de Espanha, ou voltava para trás, para Portugal." Recuou e começou o terceiro estágio, onde está agora, aos 26 anos, com uma bolsa do programa INOV-Jovem.
Ser do Algarve tem uma agravante: estar fora da casa dos pais, obrigando-a a pagar renda mensalmente. Poupar é uma das coisas que se aprende a fazer. "Jantar fora nem pensar." Reduzem-se gastos com "roupas, acessórios e revistas". "As distracções evitam-se e arranjam-se soluções, como saber os dias mais baratos no teatro ou ir a exposições gratuitas. Vou-me moldando." Mas sem se conformar.

Sair para o estrangeiro
A vontade de sair do país é partilhada por quase todos. É uma das consequências da actual situação de desemprego, segundo o presidente da EGOR, lembrando que Portugal é um país com muitos "emigrantes de luxo". O sentimento de frustração, ainda que "positivo", é para a Ivone a razão de saída. "Sentes que não te aproveitam, não te dão uso. Não somos reconhecidos pelo que estamos a fazer." O Nuno aspira também a um dia sair. "Pensei muito e acho que preciso de um recomeço. Preciso de esquecer o que veio até agora, limpar tudo e apostar em algo novo."
Ainda que um dia tenham optado por profissões distintas e que tenham idades que cobrem uma década, há algo que ultrapassa essas diferenças. Ser estagiário, hoje, é partilhar uma mesma língua. E no dia em que faltarem os estagiários, confirmam, a força trabalhadora perder-se-á um bocadinho.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Bolonha: 10 anos de indigestão

Artigo retirado integralmente do Centro de Média Independente de Portugal


«No passado dia 15 de Março, foram assinalados os dez anos da assinatura da Declaração de Bolonha. O acordo, celebrado entre cerca de 47 países, previa a formação de um espaço transnacional de ensino superior que possibilitasse um maior intercâmbio entre instituições e uma maior mobilidade dos seus estudantes. Desde o início, os objectivos de Bolonha eram facilmente evidenciáveis, sendo possível identificar no seu texto os habituais chavões neoliberais, como a «promoção da competitividade entre instituições» ou o fomento dos níveis de «empregabilidade» dos seus formados. Se a retórica pouco enganava, a sua aplicação prática não deixaria margens para dúvidas.

Em Portugal, a assinatura da declaração irá gerar, directa ou indirectamente, profundas mudanças no sistema de ensino superior. O valor de propinas, até então fortemente contestado, sofre um aumento brutal (superior aos 100%), tornando cada vez mais difícil a condição dos estudantes com menores rendimentos. Perante uma acção social escolar incapaz de responder a estas situações, a banca consegue uma maior penetração no ensino superior, aproveitando o vazio criado pelo estado. Através do seu sistema de empréstimos a estudantes, iniciam os jovens numa prática adulta: o endividamento.

Ao aumento de custos, contrapõe-se a diminuição da qualidade de ensino. A necessidade de se fabricar trabalhadores qualificados, prontos a alimentar qualquer call-centre ou centro comercial, conduziu à diminuição do número de anos de licenciatura (de 4 para 3) e ao aumento dos cursos de mestrado, não sujeitos a financiamento público. Bolonha, deste ponto de vista, parece procurar impor nas universidades um quase apartheid de classe: os mais pobres ficam cada vez mais afastados do ensino superior; os que têm alguns recursos têm uma licenciatura com menos anos, mas a um maior preço; os mais privilegiados têm a possibilidade de vir a complementar a licenciatura com a frequência de mestrado.

A redução do orçamento para o superior, verificada ao longo da última década, traduziu-se igualmente na precarização dos docentes – assinalada pela introdução de um novo jargão economicista: o conferencista, professor universitário a recibo-verde – e na subcontratação de algumas das suas esferas, nomeadamente dos serviços de cantina.

Porque enquanto houver infâmia, haverá resistência, vários grupos de estudantes organizaram uma cimeira alternativa, paralela à conferência europeia, com o objectivo de contestar a transformação do direito à educação em mercadoria, e de construir alternativas e estratégias comuns.

Para a próxima 4ª feira, 24 de Março, dia do estudante, algumas associações de estudantes (ESAD das Caldas da Rainha e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) estão a mobilizar para uma manifestação em Lisboa pelo ensino superior público, enquanto que em Coimbra decorrerá uma acção simbólica