O MATA ainda não matou ninguém. Nem está a pensar fazê-lo. O nome, que alguns tanto acusam de ser agressivo, mostra a vontade que um pequeno grupo de estudantes teve de provocar alguma agitação nas águas estagnadas (senão regressivas) do meio universitário no início dos anos 90. É interessante pensar que os mesmos que tanto se indignam com a agressividade da palavra «mata» são os mesmos que insistem que as praxes e a tradição académica são dóceis brincadeiras e que quem não precisa delas é porque não gosta de brincar.
Mais de quinze anos já passaram desde o início do MATA. Com o agravar da apatia das gentes que nos rodeiam e das aparentemente imparáveis correntes de massas sonâmbulas, sentimos cada vez mais necessidade de lançar gritos dissonantes, de afiar bicos que rebentem as bolhas em que vivemos e de dizermos o que pensamos sem medo de ferir consensos e incomodar os poderes.
A luta contra a praxe não é para nós um fim, por si só. Se nos indignamos com ela e com os trajes negros em que roçamos ao passar nos corredores da faculdade e na rua, é porque a chamada “tradição académica” não sabe ser senão um veículo dos valores mais conservadores, sexistas, autoritários e passadistas que pode haver. Em vez disso, gostávamos de encontrar nas faculdades mais espaços de discussão sobre o que aí se passa e o que se passa no mundo, sobre aquilo que interessa às pessoas que nelas vivem várias horas dos seus dias. Em vez de organizar praxes, preferimos organizar actividades em que todos se sintam iguais com as suas diferenças e onde possamos criar objectos que reforcem o nosso desejo de mudar as nossas formas de estudar, de nos divertir e de viver.
Partindo dessa vontade, o MATA já criou, colou e distribuiu centenas de cartazes e panfletos e pintou dezenas de murais, já organizou vários debates e duas festas (sem quaisquer patrocínios de cervejeiras ou outras empresas!) e editou oito Toupeiras, um vídeo e o cd Não resistir só e não só resistir, que junta as músicas de várias bandas pouco tradicionais que continuam a não querer acomodar-se. Descobrimos que para fazer coisas basta ter mãos e cabeça, e vontade de não estar sozinho. Agora que o sabemos, experimentem dizer-nos para parar!
Década de 90
As praxes são já, a nível nacional, uma realidade indesmentível. Nunca tendo deixado de ser vistas como “brincadeira” e como uma espécie de imagem iconográfica da “vida de estudante”, não tardam muito os primeiros sintomas de “incómodo”. Alguns “pequenos” casos borram a pintura (por exemplo, em 1994, três alunos da Universidade de Évora são hospitalizados) e algum espaço público se vai abrindo para outras interpretações menos divertidas do fenómeno (o M.A.T.A. vai cimentando a sua sigla, por exemplo, embora não tenha ainda capacidade de chegar a sectores “exteriores” à Escola); até alguns responsáveis políticos começam a jogar à defesa, mesmo que nunca ponham em causa as ideias e os intérpretes “tradicionalistas” e os seus poderes (de representação, nomeadamente) – por exemplo, Marçal Grilo, enquanto Ministro da Educação, em 1996, falou em exageros e na necessidade de lhes pôr termo, pressentindo, talvez, que o pior podia acontecer a qualquer momento.
Novembro 1999
Uma aluna da Escola Superior de Educação de Leiria declara-se vítima de agressões físicas e humilhações durante as praxes: num “tribunal de praxe” a “sentença” dita o corte do seu cabelo. É a primeira vez que alguém anuncia a vontade de iniciar um processo em tribunal – o que, pelos vistos, não chegou a acontecer. Era um primeiro sinal público de descontentamento importante relativamente às praxes. O M.A.T.A. nunca o acompanhou.
Janeiro de 2003
Ana Sofia Damião, aluna do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, denuncia publicamente as agressões de que foi alvo durante as praxes do início do ano lectivo. Insultada, obrigada a despir-se e a vestir-se novamente – agora com a roupa interior por fora –, forçada a simular orgasmos, a relatar pormenores da sua vida sexual e a simular relações sexuais com colegas. Já muito depois de ter deixado claro que não estava a achar graça à “brincadeira” e que não queria participar nela, foi posta de joelhos e – pormenor ridíciulo, talvez – intimada a insultar os seus pais. Vale tudo para humilhar quem não obedece às ordens. A Ana enfrenta o início de uma depressão que a afasta dos primeiros tempos de aulas. Quando voltou, fez queixa junto da escola e do Ministério.
O Expresso faz a primeira notícia, que tem um grande efeito no país: todos os órgãos de comunicação social “agarram” o caso e muita gente deu opinião – “sangue”, injustiça, coragem e espanto são ingredientes irresistíveis. Nesse mesmo dia (04-01-2003), o André Pires (do M.A.T.A.) faz um directo na SIC Notícias. O M.A.T.A. nunca mais deixou de acompanhar e tentar influenciar o desfecho deste caso (embora apenas alguns meses depois tenha sido possível estabelecer contacto com a Ana).
Pedro Lynce, Ministro da Ciência e Ensino Superior da altura, declara apressadamente que levará “até às últimas consequências” uma investigação sobre o sucedido. O futuro viria a desmenti-lo, como era de esperar. Mas, na euforia de mostrar a sua aplicação pessoal no desenvolvimento do processo, acusa antigos Ministros de não terem tido a mesma coragem do que ele – fica a saber-se que, entre 1997 e 2000, foram arquivados 9 casos de violência nas praxes. Apesar de ser apenas uma forma de aliviar a pressão, esta reacção revela duas novidades muito importantes: as violências das praxes são agora um facto público e (aparentemente) indefensáveis; os poderes (político, nomeadamente, mas não só) são chamados a pronunciar-se e passam a ficar comprometidos e associados ao desenrolar dos acontecimentos.
Luís Cardoso, director do Piaget de Macedo de Cavaleiros, também demonstrou espanto e indignação perante o sucedido. Prometeu energia e rapidez no apuramento dos factos e abriu um inquérito. Mais tarde se revelariam os seus verdadeiros propósitos... O M.A.T.A. terá sido a única voz pública que nunca acreditou nas suas “boas intenções”, o que se confirmou logo no final do mês: o tal inquérito conclui que, sim senhor, houve uns “exageros”... Resultado: agressores e agredida foram sancionados, por igual, com uma repreensão escrita – a Ana Sofia “pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição”; os agressores “por não terem a preocupação de avaliar se as ordens da praxe poderiam ferir susceptibilidades individuais”. Parece inacreditável, mas as aspas delimitam transcrições dos resultados “apurados”. A Ana reage mantendo a coragem inicial, demonstrando-se indignada e exigindo, desde logo, a transferência para outra faculdade onde existisse o mesmo curso (por falta de condições para se manter naquela escola e, pouco depois, na própria cidade).
Os “colegas” da Ana ganham espaço na imprensa para dizer que ela “exagerou”, mesmo antes de se conhecerem os resultados do inquérito. O fechamento corporativo não admitia que estas coisas fossem tratadas na “praça pública”.
Começam também as primeiras intenções de, aproveitando a onda, legislar no sentido de introduzir um Regime Disciplinar nas faculdades. O M.A.T.A., e bem, nunca foi na conversa: sabíamos que o problema era outro e que se estava apenas a usar as praxes como desculpa.
Estes parágrafos são longos, se calhar. Mas, de facto, muita coisa aconteceu em menos de um mês. A partir daqui, no fundo, muitas coisas tiveram que mudar para que tudo ficasse (quase) na mesma. O M.A.T.A. passará a disputar, durante muito tempo, a profundidade destas mudanças. Como seria de esperar, as coisas não correram como preferíamos. Mas também não é mentira que conseguiríamos vitórias muito importantes.
Fevereiro de 2003
Abre-se uma aparente guerra entre a direcção do Piaget e o Ministério. O problema é fácil de explicar: Lynce, depois da importância mediática que este caso teve, não pôde ficar satisfeito com os resultados do inquérito da escola e vê-se forçado a enviar o caso para a Procuradoria Geral da República, ou seja, na prática, para os tribunais; o Piaget diz que “dá o caso por encerrado”. Na troca de argumentos entram os trabalhos da Inspecção Geral da Educação (levados a cabo nos dias anteriores): a IGE, no relatório que entretanto produz sobre o caso, queixa-se de falta de cooperação da escola – dificuldade no acesso a documentos, etc. –, diz haver razões para uma punição legal dos agressores, mas que não deve ser o Ministério a promovê-la...
Ana Santos, aluna da Escola Superior Agrária de Santarém (ESAS), entra em contacto com o M.A.T.A.. Mais uma vítima das violências da praxe, que acha que lhe podemos “dar uma mão”. Depois da Ana Sofia Damião, parece mais fácil avançar. E o M.A.T.A. – para o “bem” e o para o “mal” – começa a ser visto como um grupo de pessoas que pode ajudar vítimas...
Março de 2003
A Ana Santos decide avançar com a denúncia pública. Queixa na polícia, carta para a direcção da escola e carta para o Ministro. O M.A.T.A. acompanhou e ajudou em todos estes passos, contribuindo ainda para a dimensão pública do caso. Os relatos voltam a impressionar: a Ana foi “esfregada” com bosta, insultada e impedida de usar o telemóvel durante várias horas (ordem a que desobedeceu...; mas, ao contactar com a mãe, foi-lhe retirado o telemóvel... para insultarem também a mãe e a impedirem de repetir a graça!) e, finalmente, abandonada a kms de casa. Como no caso anterior, o resultado imediato foi uma baixa psiquiátrica e a total incapacidade de voltar à faculdade.
O Ministro é obrigado a gerir mais um caso. Pede de imediato esclarecimentos formais à escola e acciona outra vez a Inspecção Geral de Educação. Entretanto, como a própria polícia envia prontamente o caso para o Ministério Público, o Ministro Lynce vê-se obrigado a declarar esta situação como “ainda mais grave” do que a de Macedo de Cavaleiros. De caminho, volta a falar na “falta de instrumentos” para lidar com estes casos – ou seja, espera ardentemente por um consenso entre os Reitores para fazer aprovar um Estatuto Disciplinar para as faculdades.
Entretanto, o Presidente do Conselho Directo da ESAS, Henrique Soares Cruz, abre um inquérito. No entanto, o descaramento deste dirigente era ainda maior do que no Piaget: no momento em que anuncia a abertura do dito inquérito faz logo saber que, no seu tempo de estudante, também tinha “recebido bosta no corpo”, o que era uma “tradição da escola”. Também o Instituto Politécnico de Santarém (ao qual a ESAS pertence) manda instaurar um inquérito, mas avisa que “a Comissão de Praxes é soberana”!
O CDS-PP apresenta um Projecto de Resolução na Assembleia da República, que designa por “Medidas de enquadramento das praxes académicas”. Nele se defende que as praxes são “uma tradição que deve ser preservada”, o que “nada tem a ver com as práticas de alguns que aproveitam usos e costumes seculares para exercerem instintos autoritários e arbitrários, por completo afastados do verdadeiro espírito académico”. A mediocridade – e, de certa maneira, a ingenuidade – do documento mereciam mais citações... Mas, para abreviar, convém reter o essencial: as propostas finais tentam misturar – como se tudo fosse a mesma coisa... – direitos, “tradição”, legitimação e disciplina; ou seja, encavalitar um suposto repúdio perante a violência e uma pretensa necessidade de avaliação dessa realidade, exigindo “legislar sobre o Regime Disciplinar dos estudantes do ensino superior”. A discussão no Parlamento teve o interesse de o dividir e de esclarecer onde estão os apoios politico-ideológicos da praxe: a divisão esquerda/direita foi bastante nítida.
Abril de 2003
O Piaget tenta reagir à pressão dos acontecimentos (e à imagem que periga a instituição), organizando umas “jornadas de reflexão sobre as praxes académicas”, em Viseu. “Especialistas”, académicos e alguns estudantes, já agora – na plateia, todos a favor, claro! Para “orar”, lá se convidou alguém dos Antípodas. Muita pompa, alguma publicidade e mentiras q.b.: o M.A.T.A. não foi convidado, mas o nosso velho amigo Luís Cardoso afirma termos recusado o seu amável convite; o mesmo senhor acabaria por dizer que a Ana Sofia Damião, que não pisava Macedo de Cavaleiros há meses, continuava nas aulas e até tinha boas notas... O essencial é que esta era uma primeira reacção institucional, preparando já alguns ajustamentos a fazer. Fica aprovado uma “Carta de Princípios Orientadores das Praxes nas Academias Piaget”, que não é mais do que uma afirmação legitimadora, com uns pozinhos de “juizinho” paternalista.
Maio de 2003
A Ana Santos, perante a clara intenção da escola arrastar o seu processo (e a cada vez maior passividade do Ministério), envia nova carta ao Ministro Pedro Lynce, desta vez exigindo a transferência para outra faculdade que tenha um curso igual ou semelhante. Duas semanas mais tarde, os resultados do inquérito do Instituto Politécnico de Santarém apontam para a necessidade de processos disciplinares a (apenas) sete dos alunos envolvidos.
Os Reitores entregam um anteprojecto de Estatuto Disciplinar ao Ministro. Proibições, regras, penas. Tudo, menos as praxes (felizmente!), que eram a desculpa. Vale a pena recordar que estes eram tempos de anunciados aumentos brutais para as propinas... A previsível contestação que se seguiria (bem como todas as outras) teriam um novo inimigo.
A violência no Piaget de Macedo de Cavaleiros repete-se. Desta vez, durante um “tribunal de praxe”, vários alunos foram agredidos (por membros de uma trupe, encapuzados!), alguns dos quais ficaram mesmo feridos. Falta de sorte, talvez, depois da tal “Carta de Princípios”... Os alunos agredidos chegam a prometer fazer queixa na polícia, mas o tempo havia de passar sem que isso acontecesse.
Luís Cardoso, percebendo que tinha que anular um novo escândalo, suspende, durante 15 dias, os 25 alunos que organizaram o “tribunal”. Mais uma vez, diz-se escandalizado e define os acontecimentos como “um caso de polícia”. Sabendo que seria uma forma de ganhar tempo (numa altura em que é mais fácil fazê-lo), anuncia também a suspensão das praxes “por tempo indeterminado”, pelo menos “até à elaboração do código de praxes com base na Carta de Princípios”. Inacreditável. Medidas administrativas e superficiais, sobretudo legitimadoras, mas que lhe permitiram “limpar” a imagem do Piaget, de certa maneira. O M.A.T.A. tentou lembrar, mas já quase toda a gente estava esquecida: foi este senhor e este Instituto que deixaram impunes violências anteriores, punindo agredida e agressores com penas iguais e deixando a vítima à mercê da sua sorte, lentamente expulsa da instituição.
Junho de 2003
A Universidade de Évora organiza o “Iº Congresso Nacional da Tradição Académica”. Todos estão convidados: Presidente da República, Primeiro Ministro, Presidente da Assembleia da República, o amigo Lynce, reitores, representantes de partidos políticos, etc. O poder junta-se e organiza uma resposta política, num momento em que as praxes estão em causa. O reitor anfitrião lança o mote: “a tradição académica deve subir a fasquia ética e cívica”. Outros dirão outras coisas – alguns mais “preocupados”, outros mais defensivos –, mas, no essencial, a mensagem está dada. A praxe é para continuar, mas com o necessário “juizinho” que a afaste dos escândalos. As tonalidades em que esta mensagem é passada vão desde o “separar o trigo do joio” do falecido Lino de Carvalho até à “defesa da tradição” do Adriano Moreira.
A proposta definitiva de Estatuto Disciplinar é já conhecida, com a promessa de que será aprovada na Assembleia da República em Outubro seguinte. O M.A.T.A. é contra, o que, apesar de pouco contar, sempre havia afirmado. As Associações de Estudantes, paulatinamente, também se posicionam desfavoravelmente em relação à implementação do Estatuto. A Fenprof, infelizmente, apoia e adianta que a proposta apenas “peca por tardia”.
Agosto de 2003
A Ana Santos consegue a transferência para outra faculdade. É, sem dúvida, uma vitória muito importante. É claro que esta decisão foi arrastada, protelada para uma conveniente silly season que permitiu ao Ministério limpar a face sem a perder. No entanto, é um desfecho inédito e assinalável. Para o M.A.T.A., que sempre esteve envolvido no processo e deixou claras as suas exigências e pontos de vista, esta vitória é também muito relevante e marca um novo protagonismo.
Entretanto, há muito que a Ana Sofia Damião já estava fora dos planos do Ministério. Apesar das promessas, das reuniões e viagens a Lisboa, o facto é que foi obrigada a fazer os exames nacionais para tentar uma nova colocação noutra faculdade. Agredida, atacada pela Direcção da escola, abandonada pelo Ministério e ainda em baixa psiquiátrica, nunca perde a coragem. Há-de conseguir (em Setembro) entrar para outra faculdade e insistir na necessidade de levar até ao fim o processo judicial.
Outubro de 2003
Começa o novo ano lectivo. Sente-se uma novidade: as praxes são agora notícia de outra forma. De alguma maneira, inicia-se um esboço de debate público sobre as praxes.
O Instituto Politécnico de Santarém aplica, oportunamente, os resultados do seu inquérito: 15 dias de suspensão para 7 alunos. No início do ano lectivo, depois de ter estado na gaveta durante meses, lá sai uma conclusão do inquérito. Juizinho (para os alunos) e vigilância (para as faculdades) são agora a base da propaganda. Na ESAS, no entanto, tudo parece na mesma: Henrique Soares Cruz avisa que os “seus” alunos “podem brincar à vontade”, cumprindo “as tradições seculares da casa”, uma vez se assim não fosse seria admitir que “no ano passado houve alguma anomalia, e não houve”!
11 alunos simulam um assalto a um banco, durante as praxes. Caras tapadas e armas a brincar, gritam “isto é um assalto”. O sentimento de impunidade não lhes permite prever que uma situação destas pode acabar mal. Acabam a prestar declarações na PSP, mas, sendo uma praxe, ninguém levou a mal…
O Ministro Lynce é apanhado a favorecer uma filha de um colega de Governo no seu acesso ao ensino superior e é obrigado a demitir-se. Maria Graça Carvalho é a senhora que se segue.
Do Instituto Superior de Engenharia de Coimbra vem mais uma queixa. Um aluno denuncia que foi obrigado a atar, no seu pénis, um cordel que amarrava um tijolo. A Ministra, que ainda mal aquecido o lugar, recebe um carta assinada pelo pai do aluno e declara que exigirá todos esclarecimentos à escola. O caso ficará por aqui.
Novembro de 2003
O M.A.T.A., os Antípodas e a República Marias do Loureiro lançam o “Manifesto Anti Praxe”. Este documento e a sua concretização foi preparado durante meses, inaugurando uma tentativa de trabalho em rede. Este manifesto foi assinado por cerca de 70 figuras públicas, umas mais célebres do que outras. Com todas as debilidades da coisa, valeu a pena por se ter “obrigado” alguns sectores da sociedade a pronunciarem-se sobre um assunto que é visto como “de estudantes” e pouco mais.
As praxes na polícia são notícia. “Praxe sexual” no Instituto Superior de Ciências Policiais. Há queixas e ameaças de expulsão. O conservadorismo é prato forte: lamber chantili num pénis de borracha aplicado num manequim é um bom exemplo do que “aprendem” os nossos polícias na escola.
Entretanto, a contestação sobe no ensino superior – aumentos das propinas, sobretudo – e as intenções de impor apressadamente o Estatuto Disciplinar não colam. Depois de invasões de conselhos direitos e alguma desobediência em várias faculdades, 15 mil estudantes manifestam-se em Lisboa.
Março de 2004
Luís Cardoso anuncia a decisão de “manter suspensas por oito meses” as penas – 30 dias de suspensão para 8 alunos e 45 dias para um outro – aplicadas aos alunos envolvidos no segundo caso de Macedo de Cavaleiros (Maio de 2003). Quase um ano depois, fica apenas aquilo que este (ir)responsável chama de “efeito pedagógico”.
Outubro de 2004
Felícia Cabrita assina um artigo na revista Grande Reportagem, em que revela a morte, em circunstâncias estranhas, de um membro de uma tuna da Universidade Lusíada de Famalicão. “Morte na tuna” ou “vítima da praxe” são títulos da responsabilidade daquela jornalista, que pretendem deixar clara a sua tese: Diogo Macedo foi assassinado, pelos seus colegas, numa “praxe” da tuna.
A história, difícil e longa pode ser resumida. O Diogo estava em processo de afastamento da tuna por estar cansado das praxes a que era repetidamente sujeito – nas tunas a hierarquia é rígida e ele ainda não tinha chegado ao “topo” da cadeia. No entanto, os seus colegas, numa noite perto do início do ano lectivo de 2001/2002, telefonam-lhe para se encontrarem com ele num edifício onde habitualmente ensaiavam. Ele foi, ao que parece, esperançado num reconciliação que lhe permitisse continuar na tuna sem ser praxado. Algumas horas depois o Diogo já estava no hospital, onde viria a morrer alguns dias depois. Ninguém sabe explicar o que aconteceu, apesar de estarem cerca de 20 pessoas no edifício
Quando o artigo produz efeito mediático, a faculdade, no seu site oficial e em declarações várias, dá voz à defesa dos “colegas” visados e não perde um segundo com o outro lado da história. Haveríamos de saber mais tarde, como não é de espantar, que a conivência tinha sido a chave do silêncio durante aqueles três anos.
O M.A.T.A. acompanhou o caso, nomeadamente através da mãe do Diogo. Durante algum (pouco) tempo ainda pareceu que o processo judicial, já arquivado, poderia ser reaberto. No entanto, a falta de condições (anímicas) da mãe para continuar esta batalha e um forte manto de silêncio e cumplicidades não o permitiram.
Ficam, no entanto, alguns dados. A Felícia Cabrita, numa semana de investigação no local, descobriu mais do que as polícias em três anos – isto, apesar da direcção da Lusíada ter ameaçado de expulsão qualquer aluno que lhe prestasse declarações! Por outro lado, os relatos da mãe deixam claro que a escola sempre soube o que aconteceu; inclusivamente, tentou sempre silenciar as suas tentativas para descobrir as causas da morte do seu filho. Ao que parece, o poder da Universidade Lusíada é demasiado forte em Famalicão...
Novembro de 2004
Fica a saber-se que o Ministério Público decide que há razões para levar a tribunal as agressões sofridas pela Ana Santos. Seis pessoas acusadas de ofensa à integridade física qualificada e uma outra por coação e injúria.
A escola reage. A sua nova directora afirma-se “surpreendida” com a decisão Ministério Público, acrescentando que “foram tomadas medidas” para “controlar” as praxes. Ou seja, em Santarém não se desejam mais casos, mas anseia-se o branqueamento daquele que borrou a imagem da ESAS.
A Ministra Maria da Graça Carvalho recebe mais uma queixa por violência nas praxes. No entanto, nunca se viria a saber sequer a faculdade em questão. O aluno, com a queixa, pretendia “apenas” voltar a ter condições para frequentar a escola.
Entretanto, o processo judicial da Ana Sofia Damião chega à fase decisiva. Infelizmente, o juiz responsável pelo processo declara não haver razões para o julgamento. Os argumentos são inacreditáveis: a Ana, se “participou nas praxes”, sabia ao que ia... Ou seja, nas praxes há violência(s) e quem adere tem que se sujeitar! O mesmo juiz diz mesmo que a Ana deveria ter accionado o estatuto de “anti-praxe”... Parece incrível, mas um tribunal prefere as “leis” da praxe às leis a sério.
A Ana anuncia um recurso a esta decisão, que nunca viria a acontecer porque o seu próprio advogado não resistiu às pressões locais. Ficava perdida a primeira hipótese de julgar os crimes da praxe.
Dezembro de 2004
Um artigo do Correio da Manhã (05/12/2004) revela uma realidade cruel. João Domingos Sanches, docente e membro do Conselho Científico e Pedagógico do Piaget de Macedo de Cavaleiros na altura em que o caso da Ana Sofia Damião ocorreu, revela que a direcção da escola discutia a forma de “pôr a render” o caso na comunicação social. A receita era simples: o caso inicialmente traria uma imagem negativa à instituição; no entanto, com o empenho na sua descredibilização e a “ajuda” da agressividade dos colegas (incentivada pela escola, nomeadamente pela protecção que ia conferindo aos agressores), os responsáveis do Piaget achavam que ficaria “provado” que era tudo uma invenção de uma louca ou oportunista – a Ana, portanto; entretanto, o nome do Piaget andaria pela imprensa, o que, para uma privada, é publicidade gratuita! O “plano” incluía o conhecimento e aprovação dos dirigentes nacionais do Piaget (Reitor incluído). Quando, numa reunião, João Domingos Sanches se indignou com a “estratégia”, Oliveira e Cruz (o Reitor) exigiu silêncio absoluto sobre o assunto.
Apesar do escândalo destas revelações – e dos esforços do M.A.T.A. por as amplificar – nunca ninguém, até hoje, quis “pegar” no assunto. Os interesses já estavam a ser demasiado beliscados...
Setembro de 2005
Com a nova maioria Sócrates, Mariano Gago chega à pasta do Ensino Superior. Sendo conhecidas as suas anteriores posições sobre as praxes, que nunca escondeu, o M.A.T.A. desafia-o publicamente, através de uma carta aberta, a ter uma atitude diferente dos seus antecessores. O Ministro nunca nos respondeu.
Novembro de 2005
Mariano Gago revela, por sua própria iniciativa, que recebeu uma nova queixa relacionada com as praxes – desta vez, uma aluna de Bragança. Declara-se “infinitamente revoltado”, adiantando que “as universidades não são sítios onde a lei não se aplique; não é possível que um pequeno grupo de alunos utilize essa arma da praxe, a ideia de que é preciso uma festa de iniciação para humilhar e espezinhar os colegas mais novos”. Qualifica as praxes de “prática fascista” e exige a aplicação das leis dentro das instituições de ensino, revoltando-se ainda contra a atitude dos responsáveis pelas escolas: “deveria haver uma atitude de menos complacência por parte das universidades”.
O caso viria a ser uma decepção para a imprensa. Afinal, não tinha chegado a haver sangue: a aluna escreveu ao ministro “apenas” porque se sentiu pressionada. Os responsáveis do Instituto Politécnico de Bragança aproveitam para acusar o ministro de “precipitação” (depois da já habitual de reacção corporativa: “ela deveria ter falado connosco primeiro”).
Sem dúvida, esta foi uma atitude inédita por parte de um Ministro. Mas, infelizmente, não teve sequência.
O Tribunal de Santarém decide que há razões para avançar com o julgamento das agressões sobre a Ana Santos. É a primeira vez que as praxes vão a julgamento e mais uma vitória muito importante. Apenas seis dos sete arguidos, acusados do crime de ofensa à integridade física qualificada. Ambas as partes pediram a reapreciação do processo – a Ana quer que sejam incluídos outros crimes e, obviamente, os arguidos contestam a acusação e a necessidade de julgamento –, mas é pouco provável que a decisão sofra alterações importantes.
(Uma manifestação de estudantes, em Lisboa, dividiu-se em Entrecampos. Embora não tenha relação directa com o resto da cronologia, era impossível não a referir. Até porque ela justifica muito da agenda deste Encontro...)
Dezembro de 2005
O gabinete do Mariano Gago contacta o M.A.T.A. para propor uma reunião com o próprio ministro. O objectivo é “trocar impressões sobre as praxes, o que, como sabem, é um assunto que preocupa muito o sr. ministro”. Mais: este encontro serviria também para, com toda a antecedência, preparar iniciativas que pudessem contrariar os “problemas” que se colocariam no início do ano lectivo seguinte. O M.A.T.A. aceitou o convite, mas, infelizmente, a reunião nunca aconteceu. Alguém terá dito ao sr. ministro que nós não éramos a companhia indicada para beber cházinho...
Fevereiro de 2006
Um professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) desenvolve um pequeno inquérito, dirigido aos alunos de duas turmas do 1º ano do curso de Sociologia, sobre as praxes. Os resultados são interessantes: “o sentimento da esmagadora maioria dos alunos que respondem é de que a praxe dura demasiado tempo, é intensa, humilhante, degradante, cansativa, geradora de problemas de saúde e prejudicial para a organização da vida pessoal e do estudo”.
Maio de 2006
Os inquéritos estão na moda. Desta vez é um estudo mais completo, dirigido por Elísio Estanque, da Universidade de Coimbra. O objectivo é avaliar as culturas juvenis e a participação cívica dos jovens – praxes incluídas. Os resultados são interpretáveis de várias formas. Elísio Estanque prefere concluir que os estudantes têm “um distanciamento crítico” em relação à praxe.
Junho de 2006
Era impossível não referir o nosso CD: “Não Resistir Só e Não Só Resistir”. Também ele é uma resposta às “moderações” e a afirmação de outras possibilidades e outras propostas.
Agosto de 2006
A Associação Académica da UTAD “responde” com um inquérito “alternativo” ao de Fevereiro. Este seria, então, mais credível: uma empresa séria, a TNS Euroteste, contratada para o efeito. Os resultados são, apesar de tudo, interessantes, revelando que não há consenso sobre o assunto entre os estudantes. “Folclore” à parte, interessa reter esta imensa necessidade de justificar e enquadrar – aliás, a referida associação promete “melhorar” a praxe, nomeadamente reduzindo a sua duração.
A Ana Sofia Damião avança com um processo cível contra o Piaget de Macedo de Cavaleiros. Perdido o processo-crime contra os agressores, tenta agora responsabilizar a escola, exigindo 70 mil euros pelos “danos morais e patrimoniais” decorrentes do caso. É a primeira vez que uma faculdade se vê obrigada a defender-se em tribunal pela sua negligência e conivência com as violências da praxe.
Outubro de 2006
O julgamento cível que opõe a Ana Sofia Damião e o Piaget de Macedo de Cavaleiro tem a sua primeira sessão. No entanto, é adiado para Fevereiro de 2007, uma vez que a juíza considerou útil tentar um consenso entre as partes.
À porta do tribunal, dez alunos trajados apoiam o Piaget. Levam uma faixa: “Pisem, mas não acabem com o espírito académico”... Dispensa comentários.
A Reitoria da Universidade de Aveiro proíbe as praxes no interior do “campus”, na sequência de “excessos” que obrigaram à hospitalização de uma aluna. E lança um ultimato: ou se regulamentam as praxes ou são simplesmente proibidas.
Fevereiro de 2007
O Instituto Politécnico de Viseu decide regulamentar, com força de lei, as praxes. O “Regulamento da Praxe Académica” foi publicado em Diário da República, o que é inédito (e bastante preocupante). As associações de estudantes queixam-se de não ter sido ouvidas...
As praxes no exército são notícia. Machismo e humilhação são os ingredientes principais. A primeira mulher oficial de infantaria foi alvo de agressões físicas (e, provavelmente, sexuais também). Os seus “colegas” não suportaram que uma mulher chegasse tão longe... O comandante, como não podia deixar de ser, põe “as mãos no fogo pelos oficiais e sargentos”.
O julgamento cível interposto pela Ana Sofia Damião começa verdadeiramente. As testemunhas são muitas, pelo que é necessária (pelo menos) mais uma sessão, já marcada para Março.