quinta-feira, 22 de outubro de 2009

«O que eu penso das praxes», por João Cerqueira

O escritor João Cerqueira tomou a liberdade - ainda bem! - de propor ao MATA que publicássemos no nosso blog, no contexto da nossa iniciativa «O que eu penso das praxes», um trecho que nos enviou do seu livro A culpa é destas liberdades, publicado pela Pena Perfeita. Surge assim o sexto texto da nossa rubrica.

João Cerqueira (n. 1964) é escritor. Licenciou-se e fez o Mestrado em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Actualmente prepara o seu doutoramento sobre o artista plástico José de Guimarães. Tem vários livros publicados. Ver mais aqui.


O QUE EU PENSO DAS PRAXES

Praxe:

Mas o melhor estava para vir.
Dias depois, quando já me preparava para regressar à ignominiosa normalidade democrática deparo com outra vibrante demonstração de restauro dos valores do antigamente. E desta vez eram os mais novos a darem o exemplo. Os ventos da mudança já se fazem sentir entre a juventude soprando os ares da renovação numa fulgurante limpeza da podridão que inquina as mentalidades. Pois a natureza humana foi dotada de mecanismos de auto-regulação que disparam o funcionamento de implacáveis engrenagens quando os comportamentos individuais ou colectivos ultrapassam os limites da decência patinando desgovernados nas acidentadas pistas de gelo da liberdade onde o tombo se sucede. Accionado o travão de mão e reposta a inércia, inicia-se então o processo de marcha-atrás, com a colaboração dos próprios sujeitos como adiante se verá, numa viagem de purificação espiritual e higiene mental cujo percurso os leva a descobrir, com a ajuda de pedagogos, uma nova dimensão na sua existência. Liberto das grades da liberdade, o animal ruge e logo exibe as garras pronto a esgadanhar o primeiro realizando a sua essência de besta irracional que os democratas lhe negavam. Como é bela a natureza.
Eram mais de uma centena marchando ordeiros com pinturas de guerra nos rostos e arrastando latas atadas por cordas aos tornozelos. Um cortejo da Inquisição veio-me de súbito à ideia, como se o tempo tivesse regredido. Meia dúzia de inquisidores de ambos os sexos impecavelmente trajados de preto comandavam os condenados sob intensas ordens e acintosos insultos. Técnicos bem preparados e voluntários esforçados produzem sempre resultados extraordinários. O enxovalho era sentido como uma iniciação ao conhecimento, a honra de ter sido escolhido entre muitos candidatos frustrados, o ponto de viragem das suas vidas. Logo, todos obedeciam com indisfarçável orgulho num êxtase semelhante ao das seitas suicidas que os fazia ansiar por humilhações cada vez mais torpes e degradantes. Como estes rapazes e raparigas não param de me surpreender. Por muito que tinjam o cabelo de cores berrantes e esburaquem as cartilagens auriculares e nasais numa aparente rebeldia há algo bem lá no fundo deles próprios que exige os prazeres indescritíveis do jugo e da vassalagem, sem qualquer razão que os justifique. Longas distâncias percorrem e consideráveis somas de dinheiro pagam para que alguém lhes demonstre a sua, e a deles, estupidez. Fantástico. A nação tem o futuro garantido. Eles são a prova de que os adolescentes estão fartos de liberdade e do excesso de direitos. Frustrados na abundância, viram-se para a ascese. Então, num crescendo de apoucamento, levaram-nos para um grande largo onde se encontrava algum público_ cenário escolhido para o culminar do ritual de passagem_ sob o olhar incrédulo de inúmeros cidadãos pois, como é evidente, uma verdadeira humilhação exige o testemunho de terceiros. Começaram por os obrigar a ajoelhar na pedra fria para nessa posição beata entoarem grosseiras ladainhas carregadas de ofensas a si próprios e aos seus familiares, num acto de culto supremo à divindade monoteísta da imbecilidade. Adoraram. Depois promoveram um jogo de estratégia destinado a estimular o raciocínio e a tomada de decisões dos participantes que consistia em coagi-los a tirar os sapatos e as peúgas efectuando assim um montículo onde se misturavam apetrechos para os pés de diversas proveniências e odores do qual os descalços recrutas deveriam retirar, após exaustiva pesquisa manual estimulada pelos impropérios que os seus donos lhes lançavam, os bens que lhes pertenciam. Fabuloso. Não é qualquer um que se lembra disto, nem um qualquer que aceita participar. Contudo, não totalmente seguros da eficácia do seu proselitismo ou da conversão dos novos fiéis, os sacerdotes e as sacerdotisas da capa preta redobraram a gritaria e as ameaças diversificando esconjuros e promessas de estadia no inferno. Pareciam levar muito a sério o seu papel. Se não fossem as circunstâncias, diria até que existia um excesso de zelo entre estes patuscos aprendizes de capataz inebriados por um poder que nunca tiveram na vida.
Não os censuro - algo dá mais gozo que achincalhar os outros?
Então, lentamente, os demónios da democracia, da inteligência e do respeito individual começavam a abandonar o corpo supliciado dos possessos irremediavelmente exorcizados, com o rabinho entre as pernas. E, como em todas as cerimónias litúrgicas, deu-se a possibilidade aos crentes de comungarem o divino sob a forma de hóstias que neste caso eram as biqueiras sujas dos sapatos e das botas dos doutores da fé, obedientemente beijadas pelas bocas pecaminosas dos noviços. Caniches de circo treinados a guloseimas não fariam melhor. Estava por fim consumado o excelso ritual de despersonalização da manada: a anulação absoluta da vontade, o fim da auto-estima, a ligação directa entre o intestino e o cérebro. Medidas alternativas como a simulação de actos sexuais ou a imitação de quadrúpedes da família do burro já não eram necessárias. Ei-los agora embrutecidos, com a dignidade esfarrapada por ilustres desconhecidos que se dizem seus amigos e o seu bem desejam, espumando um rancor que tentativas de afogamento em marés de cerveja não conseguem apaziguar, prontos a devolver com redobrada intensidade a futuras vítimas alegres o aviltamento sádico a que foram sujeitos.

0 comentários: