Em resposta ao comentário/post feito por Sir Giga (no nosso blog
aqui e no seu blog
aqui). Espero ajudar para uma reflexão sobre a praxe.
Começo por citar algumas declarações que fizeste, tanto no post como no comentário, para de seguida contrapor:
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"as mesmas [hierarquias], para além de constituírem um imperativo sociológico, são uma imposição da nossa própria biologia, tendo sido, aliás, aprimorada ao longo de milénios pela evolução" Não há nada na biologia humana que defina que têm de exitir hierarquias e muito menos hierarquias definidas antes do nascimento. Existem características que nos distinguem enquanto indíviduos, mas nada que defina à partida que uns têm direitos sobre os outros. Se uns são mais capazes numa determinada função outros serão noutra qualquer. Considerando que todas as ocupações humanas tem igual valor e são todas socialmente importantes, não me parece que deva existir alguém que pela função que desempenha deva ter mais direitos do que os outros, por mais importante que essa função seja. Aliás, a nossa Constituição reflecte esta posição. O Primeiro-ministro, ou o Presidente da República, tem tantos direitos quantos os outros têm. E estes não podem decidir sobre os outros para além das competências que lhes foram entregues pelo cargo que ocupam. É certo que muitas vezes eles tentam influenciar outros devido à sua posição. Mas isso é considerado eticamente incorrecto pela nossa sociedade, bem, e pelos nossos tribunais – normalmente chama-se abuso de poder. Se quisermos conduzir esta discussão quanto à necessidade de classes sociais, quanto à necessidade de haver uns que dominam e de outros que são dominados, a discussão será muita. Limito-me a dar a minha opinião – não são necessárias classes sociais para que as pessoas se entendam (podia acrescentar que a existência de classes determina o confronto entre elas e portanto a instabilidade social, e a história demonstra-o...) Poderia acrescentar também que considero a existência de hierarquias artificiais (artificiais, porque não reflectem a qualidade de determinado indivíduo para ocupar / desempenhar determinada função) e rígidas (porque estão pré-definidas) um dos maiores impedimentos para o desenvolvimento humano. Nas praxes o que se verifica é isso mesmo – uma hierarquia artificial e rígida que ser ve apenas para conceder os que ocupam um degrau acima poderes sobre os que ocupam os degraus abaixo. Para subir esses degraus e adquirir os poderes e direitos extraordinários (ou seja, a mais do que os que estão abaixo têm) não é necessário adquirir qualidade alguma, basta ganhar “anos de casa”. Não me parece um sistema muito lógico...
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"a adesão às mesmas [praxes] é completamente voluntária, sendo indefensável que haja coacção a esse respeito." (post)
"Há chantagem? Não, chantagear com quê? Há condicionalismos? Pois claro." (comentário)
Estas duas citações são ligeiramente contraditórias mas, enfim, vamos ao que interessa. O primeiro contacto dos novos alunos de uma faculdade com a sua instituição de ensino superior é a formulação de uma escolha que não é fácil de se fazer. E essa escolha é feita sob pressão. Um grupo de pessoas que já se conhecem (normalmente trajadas) aborda um grupo de pessoas que ainda não se conhecem, e coage este último a participar na praxe. Praxe esta onde, para quem vai ser objecto dela, ainda não se sabe o que vai acontecer. E se não se optar por ela mais nenhuma outra opção temos. Logo, não se pode dizer que é uma escolha. Dizer o contrário seria o mesmo que dizer que votar numas eleições onde apenas concorre um partido do qual não se conhece o seu programa governativo nem as pessoas que dele fazem parte é fazer uma escolha. A "escolha" é feita também sob a coacção de uma série de falsos argumentos. São os tradicionais argumentos da praxe, pouco honestos e invariavelmente repetidos na praxe de diferentes faculdades. «Se não fores à praxe...»: «...não farás amigos.», «...vais ter mais dificuldade em conhecer a faculdade.», «...não poderás usar traje.», «...não terás apontamentos por onde estudar.», «...não poderás ir aos jantares de curso ou à Festa do Caloiro.», «...não terás descontos noutras actividades da recepção ao caloiro.», «...não participarás num momento único da tradição académica onde apenas os estudantes universitários podem participar.», e por aí fora. Ouvindo estes argumentos dificilmente se conseguirá ter a iniciativa para sair dali. Se se conseguir ser-se-á automaticamente rotulado de anti-praxe e quase sempre forçado a assinar um papel a admiti-lo (quando, possivelmente, apenas não se quer ter nada a ver com aquilo). A partir do primeiro momento em que se entra na praxe já não nos pedem nada, exigem-nos. Quem praxa dá ordens, quem é praxado às ordens obedece. E estas ordens são para cumprir ou para sofrer as consequências da desobediência. Os castigos são vários, desde o singelo fazer flexões, ao rebolar pela lama, levar com comida (ou outras coisas) na cara, ouvir os colegas gritar aos ouvidos, simular actos sexuais, ou enfentar o «"Tribunal" de praxe» onde tudo parece poder acontecer. O consentimento tem de ser com base em informação, sem coacção e com tempo (não pode ser naquele momento em que os veteranos querem e quando toda a gente está a olhar para nós). Na praxe não se pode optar por fazer apenas esta ou aquela coisa. Está-se lá para obedecer a tudo, quer se goste ou não. Nos dias seguintes pode-se decidir não ir à praxe. Na verdade esta hipótese também não é uma verdadeira escolha porque o que acontece é que na maioria dos casos decide-se não ir à faculdade e assim fugir à praxe. Parece, pois, que a praxe veda o caminho à universidade para quem não quer ser praxado. Esta falta de liberdade característica da praxe, praticada em qualquer instituto de ensino superior e seja ela mais ou menos violenta, é o que a define como algo contra os princípios de uma sociedade que se quer livre, justa e solidária.
- "um grupo ao qual [o Diogo] aderiu voluntariamente (e no seio do qual, tanto quanto sei, se divertiu à grande durante anos) e rodeado por seus amigos." É verdade que o Diogo aderiu voluntariamente à Tuna. Era músico e tinha gosto em continuar a praticar música na Universidade. Infelizmente, as universidades de uma forma geral só apoiam a música na forma de Tuna e isso fez com que a ela aderisse. No entanto, não se divertiu à grande como tu dizes. O que se sabe desta história é que ele estava farto de ser praxado e queria sair da tuna. Também se sabe que ele não estaria rodeado de amigos. Ficou sozinho por uns bons momentos perante aqueles que o praxaram insistentemente ao longo dos anteriores 4 anos e que o impediam de ser tuno, apesar de já estar há tempo suficiente na tuna para tal, e que o fizeram tomar a decisão de sair. Resumindo, ele estava num ambiente hostil e sabia-o. As conjecturas que teces em seguida são demasiado absurdas e contraditas por várias declarações que lemos na reportagem da Felícia e ao longo das várias notícias que já saíram sobre o caso (é visto a descer as escadas por um colega, sabe-se que não terá ensaiado quando ficou sozinho na sala com os tunos, bater com a pandeireta na cervical com força suficiente para se aleijar a sério, é um pouco complicado,...). Mas sem dúvida que nunca saberemos como tudo decorreu e todos os cenários específicos serão sempre especulação, embora me parece que um cenário geral provável é o de que tenha sido em consequência da praxe que terá sofrido as lesões, que se verificaram na autópsia, e que resultaram na sua morte.
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"Embora não acredite que tenha mais legitimidade ou autoridade moral que qualquer outro nesta discussão, não deixarei de atestar a minha autoridade e credibilidade no que diz respeito a este assunto".
Apesar de a primeira metade da frase ser muito bonita a segunda metade tira-te logo a máscara. Na verdade, o teu pretensiosimo tresanda em todo o post...
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“De facto, os estudantes são, à luz da lei, iguais em direitos e deveres, e é bom que assim seja. Já à luz da Praxis, à qual aderem SE FOR ESSA A SUA VONTADE, não."O facto de fazeres esta declaração demonstra que reconheces que a praxe é uma prática fora da Lei e que tem essa pretensão. Mas, independentemente de os caloiros aderirem livremente ou não à praxe, nada dá o poder - aliás, a Lei, como tu disseste, retira esse poder -, aos veteranos ou à tradição académica ou a seja ao que for, de os tratar de forma diferenciada e com direitos e deveres distintos, seja em que circunstâncias for. O cariz despótico da praxe é demasiado evidente - uns dominam e outros são dominados, até ao fim do curso!!
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"O facto de alguém ter uma atitude perversa num determinado momento e contexto, não torna esse contexto, por si, perverso. O facto de alguém ter comportamentos condenáveis a pretexto das praxes, não torna a verdadeira Praxe, em si, condenável."É engraçado que os exemplos que tomaste (desporto, casamento e trabalho) são alvo de medidas legislativas “especiais” para prevenção do crime que deles pode advir e proteger a parte mais fraca. No casamento, reconheceu-se que é crime público uma agressão em contexto matrimonial, existem linhas de apoio à vítima de abuso doméstico, as penas são mais pesadas,… No desporto, nos jogos onde é elevada probabilidade de confrontos entre claques, a segurança policial é maior. Levantam-se cordões policiais, seguem-se as claques, identificam-se os indivíduos mais perigosos,… No trabalho é a mesma coisa. Tenta-se (ou tentava-se, que isto o novo código de trabalho encostou-nos à parede) proteger a parte mais fraca da relação laboral, o trabalhador. O que isto nos diz é que, nos contextos em que há uma parte com poder sobre a outra, a primeira tenderá sempre a abusar da segunda. Então porquê criar um contexto destes com a praxe? A integração não pode ser feita de igual para igual? É menos divertido para quem?
Se bem que talvez seja difícil, neste momento, abolir o casamento ou o trabalho assalariado, a praxe talvez já não o seja...
Agora, para acrescentar algum humor a este longo post/comentário, pego na última frase do teu post e faço-lhe umas pequenas alterações:
Como nota final, peço que não se aproveitem deste caso para defender as praxes no geral. São contextos ABSOLUTAMENTE distintos e é completamente desonesto, bacoco e dum chico-espertismo lamentável pegar num caso como este, descontextualizá-lo e extrapolá-lo para construir um argumento (falacioso, claro está) a favor das praxes ou pior, para aceitar a Praxe (vulgo, "Tradição Académica") como tradição e prática decorrente da vida de adultos, livres, maiores e vacinados. (Porque na verdade é a reacção que se vê tomar por quem defende a praxe quando estes casos acontecem. Demarcam-se deles, renegam-nos como uma consequência da praxe e aproveitam para dizer que a praxe é só maravilhas - a verdadeira praxe, aquela que não se vê por aí.)