Encontrei à uns dias, através
desta notícia, o
Código de Praxes da Universidade do Algarve. Não resisti a fazer uma análise séria, embora com partes inevitavelmente satíricas, tentando demonstrar várias contradições e idiotices dos "documentos oficiais" da praxe. O original pode ser encontrado
aqui.
"
No entanto, jamais devemos esquecer a verdadeira essência da PRAXE! A PRAXE Académica não é, e ao contrário do que muitos tendem a pensar, a tradicional Semana de Recepção ao Caloiro, com pinturas e brincadeiras por vezes absurdas. A PRAXE vai muito para além disso. A PRAXE é o saber viver bem todo um percurso académico. Significa o respeito mútuo, a camaradagem, a entreajuda, os cerimoniais, o convívio, a integração num meio universitário, completamente novo para todos os novos alunos. A própria palavra latina PRAXIS significa prática, modo de agir."
Este excerto vem no seguimento da adequação da "tradição" aos novos tempos, nomeadamente ao Processo de Bolonha. Entra já aqui numa falácia, a praxe é muita coisa, e também é a semana de recepção ao caloiro, as pinturas e "brincadeiras" normalmente absurdas. O percurso académico vivido através da praxe não significa nenhum respeito mútuo, não existe entreajuda quando se está de gatas a gritar banalidades sexuais. A praxe integra na praxe, não integra no espaço universitário, não dá a conhecer coisas novas, nem existe uma troca de experiências e pensamentos, mas apenas a imposição de normas decididas pelos estudantes com mais matrículas.
Não existe respeito algum pelos alunos do primeiro ano. Fala-se de acolher "
condignamente os recém-chegados alunos" no 2º artigo, enquanto que no 3º artigo a definição desse alunos passa a "
bestas". Os supostos objectivos da praxe entram em contradição precisamente com a prática. No 4º artigo passamos para a dispensa de um aluno recém-chegado ser praxado e aqui entram precisamente os documentos oficiais da praxe: a declaração feita por uma comissão de praxe para provar que um aluno que tenha mudado de instituição já foi antes praxado; e uma declaração de um aluno anti-praxe solicitando essa condição. Ora, eu sempre pensei que se não quisesse andar de gatas e andar pintado me bastaria dizer "não quero", tendo em conta que a Constituição Portuguesa (artigos
26º,
27º,
37º são bons exemplos) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (e aqui vale a pena ler o
1º,
3º e
19º) ainda têm um valor legítimo. Claro que a solicitação deste papel implicará a exclusão do estudante de todas as actividades organizadas pela Associação Académica da UALg.
O 5º artigo define a hierarquização da "tradição académica". Os estudantes não são todos iguais. Existem as
bestas que são os estudantes acabados de entrar na instituição, praxados, mas sem terem passado pelo
"baptismo"; após essa actividade aquática passam a ser perus; após a semana académica passam à condição de caloiros; torna-se numa gangrena se reprovou mais de metade do 1º ano; macebo se está no 2ª matrícula sem essas reprovações (pode ter chumbado); finalmente entra nos adjectivos mais simpáticos na 3ª matrícula, passa a ser académico (mesmo que esteja no 1º ano); será veterano com quatro matrículas; passará à condição de velha guarda com cinco ou mais matrículas.
Depois define-se os locais que são interditos à praxe. Debaixo das mesas não se pode praxar porque estas terão líquidos essenciais à vida (deduzo que sejam bebidas alcoólicas), não podem estar agarrados com os quatro membros a uma árvore porque estas são sagradas à vida. E claro, os locais de culto não são locais de praxe porque os abutres respeitam o divino (
ao contrário do que acontece pelo respeito pelo próximo). Novamente, por respeito, de baixo das capas dos insigne persona (qualquer praxista que esteja acima do grau de "académico") são proibidas as praxes (a presença de) a estudantes recém-chegados.
O fechamento da praxe é estipulado no II capítulo: é anti-praxe quem recuse o que está estipulado no regulamento inventado por essa gente. O anti-praxe perde direitos como
praxar, ser designado por aqueles magníficos títulos descritos anteriormente, usar o traje (sim, porque esta gente manda na roupa de cada um, como a Mocidade Portuguesa), e podem bem esquecer os
jantares de curso e convívios organizados por quem se traje e seja académico (ou superior). Vá lá, pode estudar que eles deixam, agora não querem é ser amigos de quem não se veste de preto.
Depois importa informar o que raio são as pessoas (
homo sapiens sapiens) recém-chegadas e por que são diferentes dos outros que estão na Universidade há mais tempo (
homo sapiens sapiens, quem diria!). São "
reles bestas". Têm um "BI" que é tipo o passe para andar nos transportes públicos, tem de ser mostrado sempre que qualquer trajadinho armado em revisor o peça. Mas é um documento importante, porque para além do nome (imagino...) e o curso tem lá escrito o grupo sanguíneo e eventuais problemas de saúde que a "besta" tenha. Querem maltratar estas pessoas,
mas não as convém estragar demasiado porque depois cai mal. A "
besta" é um "
ser inferior" (espírito de solidariedade, camaradagem e entre-ajuda, lembram-se?) que tem direitos: cumprir os seus deveres (não decididos pelos próprios); pode, vá lá, declarar-se anti-praxe (e não se misturar com aquela gente); ser tratado "
condignamente", porque não querem ir "
contra a condição de ser humano" (besta?); escolher um padrinho ou uma madrinha; e receber um nome de praxe para "
caracterizar a condição de besta". Simpático.
E há, pois claro, deveres: comparecer sempre nos eventos organizados pelos "
ilustres académicos" (se não... o quê?); "
ser moderado no uso da palavra", que significa apenas responder "
quando interpelado" (quem cala consente); tem de ser
"servil, obediente e resignado" (abolição da escravatura já foi há 100 anos, não?); não se pode masturbar, nada de "
actos misóginos ou apandríacos" (
pesquisa no Google dá como único resultado este "código"); “
a besta não ri, logo não mostra os dentes” (é uma alegria a praxe); não olhar nos olhos dos seus superiores; nem fumar (deve ser pela saúde); o estudante do 1º ano tem de se
“manter sempre num plano inferior ao dos praxantes” (todos iguais, portanto); estar sempre respeitoso em relação aos trajados que não os respeita; voluntariar-se quando vê colegas a serem praxados; não reclamar (esqueçam espírito crítico); se não tiver em aulas terá de ser praxado (esqueçam lá fazer outras coisas, como ir ao cinema ou passear); não falar mais alto que a corja trajada; gritar pelo seu curso (ou como eles dizem: “
canaliza(r) todo o seu potencial vocal para aclamar vorazmente o seu curso”); suplicar para ser praxado (mesmo que não lhe apeteça, deduzo); não falar ao telemóvel, exceptuando se receber autorização (
isto lembra-me algo...); zelar pelo bem estar e conforto dos praxistas (yep, escravatura); não andar sozinho na rua (poderá ficar parado?); ocupar o último lugar na fila; e como é ignorante procura conhecimento (?). Muito simpático. Adorava ser recebido assim.
Os perus por outro lado já têm uma vantagem. Podem ser comercializados pelo código da livre concorrência (a praxe é capitalista). Este já pode namorar, se autorizado pelo padrinho/madrinha; e usar o traje se autorizado. O caloiro é um mero título menos mau. Mancebo é um ajudante que não praxa. Finalmente o académico tem direito a praxar "
sobre o seu curso"; é responsável pela praxe que fizer; elege os perus do ano; ensina mancebos a praxar; e arma-se em bufo: identifica os que se declararam anti-praxe. O veterano já pode praxar a sua unidade orgânica, ou seja, vários cursos. A felicidade!
Existe depois a recepção ao caloiro. Começa com o "
dia da indiferença", em que a "besta" é tão reles que os praxistas "
não gastam saliva para falar, gritar e até mesmo ordenar" com eles. Há depois um
desfile pela cidade, culminando numa banhada (baptismo, dizem eles - seguindo a boa lógica cristã). Há
garraiada amadora, suponho que sem touros, mas estou por confirmar essa informação. Há a "
sapatada", que é um leilão de pessoas (sim, voltamos aos escravos e à pessoa-mercadoria) por uma noite; uma missa do caloiro não religiosa; uma
procissão com velas (dizem que é algo de submissão, são eles que o dizem); alcoolização dos perus (vão beber copos, tanta coisa para irem beber copos como toda a gente); a serenata onde se canta fado de Coimbra/académico (é a tradição, ainda que se esteja em Faro). Sobre a limitação das praxes, depois disto tudo, há uma frase: "
Durante todo o longo processo de praxes, há que existir um respeito mútuo entre praxantes, assim como estes deverão zelar pela correcta aplicação do presente código.". É isto, sim, claro.
Há depois um órgão, o "
Tribunal de Praxe", que executa as sanções da praxe, para além de zelar pelo correcto uso do traje/farda académico/a. Se houver algo fora do normal encaminham o caso para a Associação Académica, que logo reencaminhará para as autoridades competentes. Marcar o 112 dá muito trabalho. Ora, existem juízes, jurados, um advogado de acusação e um carrasco. E claro, réus e advogados de defesa (?) (os padrinhos/madrinhas).
Ora, e assim termina esta análise. Existe muito espaço aberto para coisas dúbias e todo o tipo de violências físicas e psicológicas. A praxe é isto, a praxe é merda.