A praxe é um mundo obscuro e distante escondido dos olhares de todos. Poucos são os que se conhecem que tiveram oportunidade de vislumbrar um acontecimento destes. A praxe é secreta e ninguém sabe o que é. Muitas vezes nem os próprios que praxam, e que por vezes "abusam" e portanto não praxam. "Abusam, não praxam", repetem-nos da sua torre de marfim. Os seus códigos bem definidos são apenas perceptíveis por algumas dessas almas geniais, todos os outros são hereges e incapazes de compreender seja o que for sobre este tema.
Enfim fica mais uma notícia. Desta vez do Jornal de Notícias.
É o barulho ensurdecedor que caracteriza um cortejo em que não há sinais de crítica nem de contestação.
Rituais de integração, assim entendem os apaniguados da praxe académica, os que nestas coisas participam, fenómenos como o cortejo da latada, que ontem à tarde tomou conta da Baixa portuense.
Com os céus a fazerem tréguas e o Sol quase invernal a mostrar-se, era em terra que trovejavam latas, tambores, bidões, buzinas e vozes esganiçadas dos alunos de primeiro ano, orientados por aqueles que, com o emagrecimento curricular de Bolonha, têm já ares doutorais ao fim de dois anos.
Cerca de dez mil estudantes, enquadrados à margem das ruas pela pequena multidão de familiares e curiosos que se junta nestes momentos (bem menos do que nos cortejos da Queima das Fitas), fizeram barulho, barulho e mais barulho.
As latas de bebidas, muitas pintadas com as cores dos cursos, muitas outras ostentando as marcas de refrigerantes ou de cervejas, são o ingrediente primordial, produzindo tal algazarra que até os dizeres dos caloiros, enaltecendo as respectivas escolas, se tornam praticamente indecifráveis.
Juntam-se-lhes outros artefactos, dos tradicionais tachos e panelas às modernas sirenes eléctricas montadas em carrinhos de compras de supermercado.
Com a novidade de as latas que ficavam pelo chão serem recolhidas (por caloiros, claro), para evitar o tradicional rasto caótico, os estudantes desceram dos "Leões" até à Praça da Liberdade, subindo a Avenida dos Aliados até junto dos Paços do Concelho, onde prestaram juramento, e regressaram à origem.
Nesta ocasião, por comparação com o que se passa na Queima, há muito menos euforia etilizada, embora se rasteje muito mais pelo chão. Só alguns dos ditos "doutores", trajando capa e batina e empunhando colheres de pau ou mocas de Rio Maior, procediam ao exercício do levantamento do copo de cerveja.
Entre os caloiros que alinham na praxe, é unânime a importância de que este ritual se reveste. É a semana deles, numa forma que jamais será repetida, é a celebração das novas amizades que se criam, muitas das quais perdurarão pela vida fora, é o processo de integração numa realidade que, embora efémera, lhes parece agora a coisa mais importante do mundo.
O mesmo entre os que já estão mais avançados nos estudos. No passeio da Rua dos Clérigos, uma estudante era chamada para a fotografia por amigos que estavam no cortejo, com os tais símbolos de autoridade de madeira feitos. E não queria: "Ai, não acredito! Eu estou 'destrajada', não me tragas para aqui".
"Destrajados" ou não, muitas vezes destravados, destramam tudo o que possa obstar aos alegres relacionamentos e à integração. Pelo menos, julgam que sim.
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