segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Bullying e Praxes por Pedro Foyos

O jornalista Pedro Foyos enviou-nos o seu texto publicado no blogue O Galo de Barcelos ao Poder sobre uma reportagem do Diário de Notícias sobre o bullying e as praxes académicas. É algo extenso, mas bastante interessante.


(...)

SUICÍDIO "POR CAUSA INDETERMINADA"

Comecei a interessar-me especialmente pelo fenómeno negro do "bullying" (tirania juvenil, de forma continuada, em ambiente escolar) há três anos, quando circulou a notícia do suicídio de um jovem estudante português, numa localidade do Norte. As primeiras notícias referiam um «acto de desespero por causa indeterminada", porém um ou outro órgão de informação avançaria mais tarde que não seria alheio à tragédia o clima de violência «no estabelecimento de ensino frequentado pelo estudante.» O que na ocasião deu maior visibilidade ao caso, diminutamente noticiado, viria a ser o insurgimento público de algumas personalidades das ciências da educação contra a forma como em Portugal se ignorava ou subestimava o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da "causa indeterminada". Destacaram-se nesse movimento dois prestigiados pedagogos, Beatriz Pereira, professora e investigadora do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, e Alexandre Ventura, do departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro, que alertaram para o facto de o suicídio de jovens no País estar relacionado muitas vezes com o "bullying", embora nunca assumido como tal. Beatriz Pereira, co-autora da obra notável citada na epígrafe e de outras congéneres, já passara pelo trauma de três suicídios nas escolas onde leccionara (dois rapazes e uma rapariga). Sempre "por causa indeterminada".
Aos depoimentos somou-se na internet uma avalancha de testemunhos dramáticos. As vítimas, de costume resignadas a sofrer em silêncio, ganhavam coragem e começavam a desocultar-se. Muita gente – eu próprio – apercebia-se da amplitude inimaginável do problema. Lendo aqueles relatos de sevícias indizíveis, não surpreendia que alguns jovens mais introspectivos e fragilizados tentassem a fuga por meio do suicídio.Foi neste contexto de preocupação social que o Diário de Notícias resolveu dedicar ao tema uma grande reportagem, indigitando para tal missão uma jornalista que havia sido minha estagiária e se revelara uma repórter de excepcional valia. «Missão impossível», suspirava ela, dias depois, perante o silêncio de pedra em que sempre esbarrava nas tentativas de contacto pessoal com adolescentes referenciados como vítimas pelos alunos mais velhos, amigos e solidários mas impotentes para reagir aos maus tratos praticados no interior da escola ou, com frequência, na periferia. Passada uma semana, essa nossa colega deixou-nos perplexos ao dizer que pretendia desistir da reportagem. Maior espanto ao sabermos que o motivo já não resultava da impossibilidade de falar com as vítimas mas precisamente o contrário: conseguira estabelecer secretas conversas com algumas delas, em condições mirabolantes que pareciam copiadas de um filme de espionagem. Tomámos então conhecimento de que a jornalista estivera na véspera com o "Francisco" (nome fictício) que a todo o momento a advertia: «Se eles sabem que estou a contar estas coisas vão matar-me. E também vão matar a senhora.» Repetiu isto sem fim numa conversa de poucos minutos. As "coisas" contadas pelo "Francisco" eram arrepiantes. Entre outras, a de ser colado com fita adesiva resistente («aquela mais forte, castanha») a um poste da baliza do campo de futebol contíguo à escola. "Francisco", uma criança franzina, delicada, era forçado, sob ameaças de morte e exibição de navalhas, a dirigir-se para aquele terreiro. Ali ficava, pernas, braços e tronco atados. «Mas por que te fazem isso?». Francisco: «Dizem que sou maricas. É por isso.» «E batem-te?». «Às vezes. Outras, é só porcarias.»

A nossa colega mergulhara no poço mais escuro da natureza humana, sobremaneira insuportável ao ter de render-se a uma cruel constatação: não eram adultos os protagonistas das cenas atrozes, antes jovens com idades entre os dez e os quinze anos. Debatia-se agora com um terrível dilema: era urgente denunciar, mas a denúncia poderia acarretar mais sofrimento para as vítimas, porventura a morte. E não era só o caso do "Francisco". Em meia dezena de escolas existiam outros "Franciscos" sob outros nomes fictícios: o caso da "Sara" (a "Vaca"), o "Daniel" (o "Orelhas")... De pouco valeria alterar os nomes se fossem identificadas as escolas. Também estas, em consequência, teriam de ser omitidas. A reportagem corria o risco de converter-se numa suspeitosa montagem de ficções e de omissões. Um medo insidioso apossou-se da jornalista ao inferir, dos avisos do "Francisco", que ela própria corria, de facto, um sério risco. Vieram-lhe à memória olhares de desconfiança que vislumbrara nas escolas, antes e depois de contactar pessoalmente elementos dos respectivos conselhos executivos. «Eles vão matar-me. E também vão matar a senhora.»
Por isso se predispunha, a nossa colega, a desistir. Acompanhei o caso de perto.
Um elemento da direcção do jornal (notável jornalista com quem mantive durante largos anos um companheirismo profissional bem vivo na minha memória), soube do que se passava e interveio de uma forma ponderada. Para ele era crucial que a jornalista estivesse certa de que eram verdadeiros os factos a noticiar. Sendo essa a situação, a reportagem seria publicada com alteração dos nomes das vítimas, e das escolas nomear-se-iam apenas as respectivas regiões (arredores de Lisboa, Margem Sul, etc.). Entretanto, na véspera da publicação, o jornal comunicaria por via directa e formalmente a cada um dos conselhos executivos escolares os nomes verdadeiros das vítimas, com vista às emergentes medidas de protecção das mesmas e informação aos pais. Pediu-se à jornalista um esforço adicional: reencontrar alguns dos jovens entrevistados e fotografá-los com máscaras por forma a impedir em absoluto a identificação dos mesmos.
Assim se fez.

A reportagem seria publicada em Outubro de 2006. E os leitores tiveram igualmente conhecimento de que em algumas escolas do País alunos havia que pagavam a gangues juvenis um determinado montante semanal ou mensal (entre dez a trinta euros) para não sofrerem agressões. O jornal citava uma professora do conselho executivo que assumia conhecer esse esquema mafioso, contudo declarava-se impotente para o suprimir porquanto «os locais de cobrança mudam constantemente».
O Ministério da Educação esclarecia, por esse tempo, que o "bullying" em Portugal representava apenas cinco por cento dos problemas do sistema de ensino.

"CATÁLOGO" INFINDO DE HORRORES

Nesse mesmo mês ressurgiu a eterna controvérsia à volta das praxes cruéis. Evocou-se a morte do jovem Diogo Macedo, em Famalicão, durante um ritual praxístico que lhe provocou múltiplas escoriações corporais, além da fractura de uma vértebra cervical (causa da morte, segundo a autópsia). Outro jovem sofrera edema na laringe em resultado de uma prova "popular" denominada "Berraria" (o caloiro é forçado a berrar durante horas, perseguindo um insecto ou um pequeno vertebrado prepositadamente mutilado para lhe dificultar a locomoção).

Subindo de escalão etário, desviemo-nos por momentos do “bullying” infanto-juvenil. As crianças vítimas de “bullying” tornam-se mais tarde, com frequência, agressivas. No limite reencontramo-las como autoras das “chacinas de vingança” como as ocorridas sobretudo em estabelecimentos de ensino norte-americanos. Pedagogos consideram que alguns dos mais inclementes universitários praxantes (os “veteranos”) foram outrora crianças agredidas física e psicologicamente de forma continuada. E os praxados de hoje serão os praxantes de amanhã, tendendo a “refinar” os actos da chamada “tradição académica”.

Encontram-se documentadas em vídeo ou por meio de registos fotográficos algumas praxes insuportavelmente bárbaras. Menciono quatro:

"Shot". O praxado mastiga uma malagueta, após o que ingere um "shot" de vinagre e azeite.
Simulação de actos sexuais. A rapariga caloira simula fazer sexo oral com os "veteranos" ou praticando outros actos com um poste. O rito completo passa por simulação de orgasmos.
"Barrelada". Corte de pêlos púbicos (há dois anos, um jovem sofreu ferimentos graves no escroto).
"Elefante Pensador". O praxado, de joelhos, deve mergulhar a cabeça num balde cheio de excrementos de porco ou de vaca (esta praxe confinava-se à Escola Agrária de Santarém, crê-se ter cessado).

De realçar que um ex-director do referido estabelecimento defendeu esta praxe, declarando que o contacto com a bosta é "natural".
Admite-se que mais de 50 por cento dos rituais praxísticos que continuam a praticar-se em Portugal são «ofensivos, intimadores e violadores da dignidade da pessoa humana». O "catálogo" de praxes é infindo. Numa extensa reportagem dedicada ao tema, a jornalista Fernanda Câncio fez uma síntese lapidar: «Há praxes para tudo, ou de tudo nas praxes» .

O "CORREDOR DA MORTE"

Retornando à reportagem do Diário de Notícias. O mais jovem testemunho chegado ao jornal era o de um menino de oito anos que usava a expressão "corredor da morte" para designar uma espécie de praxe na sua escola cuja singularidade era prolongar-se por todo o ano lectivo. Com fantasioso exagero e a propensão tão habitual nas crianças para captar palavras e ditos do quotidiano audiovisual, o "corredor da morte" era de facto um corredor formado por duas fileiras de alunos do 2º ciclo que batiam (pontapés, "carolos") nos novatos do 1º ano obrigados a fazer aquele percurso. Quem chorasse teria de passar segunda vez. E todos recebiam ameaças de morte se denunciassem aos pais ou professores as agressões. «Por que fazem isso aos vossos colegas mais novos?» – perguntou a jornalista. Resposta:. «Fizeram-me o mesmo quando vim para a escola.» Resposta idêntica darão os universitários "veteranos" promotores das praxes.

Ainda antes de publicada a reportagem, soubemos que o "Francisco" se encheu de coragem e contou à mãe o que se passava com ele na escola. O pai assumiu pessoalmente a protecção do filho, recorrendo à colaboração de um polícia amigo.
Pelo menos dois jovens citados naquela investigação jornalística ("Daniel" era um deles) foram transferidos para outras escolas.
E poucos meses depois, em Fevereiro de 2007, comecei a delinear um novo livro ao qual daria o título de Botânica das Lágrimas.

5 comentários:

Anónimo disse...

EU também conheço um gaja que se matou porque os pais não lhe deixaram ir ao Rock In Rio.

Chama-se fraqueza de espirito.

Bem, vamos ao que importa... hã... hã...

DIA 28 E 29 ESTÃO A CHEGAR!!!! FINALMENTE!!! OS DIAS 28 E 29 QUE TANTO QUERIAMOS ESTÃO PRÓXIMOS! TUDO IRÁ MUDAR! PERAREM-SE!

Anónimo disse...

Eu conheço um alucinado cobardolas que vem para aqui postar anonimamente merdinhas sobre um pseudo-evento qualquer que provavelmente nem irá acontecer...

Chama-se... espera... és tu mesmo! Não me admirava que fosse o mesmo débil mental que atende pelo nick/nome de Manuel Gonçalves Dias Rodão.

Anónimo disse...

Apesar das faixas etárias variarem, o facto é que este tipo de sevícias que uns aguentam em silêncio e outros repetem porque "fizeram-me o mesmo quando vim para a escola", é o tipo de comportmento que perpetua os abusos que se vêm nas praxes.

Infelizmente a notícia não traz nada de novo e que já não se soubesse...

Gostaria de dizer que o fenómeno das praxes é ausente nas universidades. Eu fui alvo de bullying durante o ciclo preparatório e a secundária e sei bem o que sofri na pele...

Isso felizmente não ocorreu mais na Universidade, mas sabe-se lá quantos outros "Diogos Macedos" existirão por aí...

Z disse...

Como é possível ter-se palas nos olhos e só ver o lado da questão que nos interessa???

bullying e praxe não é a mesma coisa!

Fui caloira. Não um dia nem uma semana mas sim um ano inteiro e teria sido mais tempo!

Costuma dizer-se que para ser praxado é preciso ter 'espirito'. E quem não o tem, não entende a praxe em toda a sua dimensão por mais que se esforce.

Tive,entre muitas outras praxes, o meu julgamento. Beijamos a cabeça de um porco (acabadinha de chegar do talho)e sujaram-nos com as mais estranhas mistelas que possam imaginar.
Querem saber?
Todos recordam essa praxe como uma das melhores!
Não percebo o que de tão violento tem o que acabo de descrever quando todos, repito, todos, porque a praxe é voluntária, estavamos lá de livre vontade!

Já passei também pelo lado de quem praxa. Pra quem axa que os piores praxantes sofreram na infancia, desenganem-se! Praxamos como nos praxaram, melhorando o que axamos que devia ser melhorado. Mas não tem nem metade da piada praxar, é muito melhor ser praxado. E pelo que acabo de dizer já podem ver o quão errado é o vosso raciocinio generalista e estereotipado da praxe e dos praxantes.

Enfim, deixo só a esperança de que pelo menos tentem ver o outro lado da questão, ouçam quem gosta da praxe mas com mente aberta, esqueçam as ideias já formadas e tentem perceber o lado de quem praxa e de quem é praxado. Atenção, respeito quem não foi/quer ser praxado, tem todo o direito a essa opinião. E também sei que há praxes ridiculas por esse país fora. Mas também há ladrões e não é por isso que somos todos maus!
Tal como entendo o lado dos 'anti-praxe', gostaria também que fizessem um esforço por entender o de quem viveu a praxe com toda a intensidade e gostou!



Peço desculpa pelo post tão longo, mas depois de tudo o que li no blog, não pude deixar de dar a minha opinião.


boa semana

Z

serraleixo disse...

Comento apenas algumas das coisas que disseste Z:

- "Costuma dizer-se que para ser praxado é preciso ter 'espirito'. E quem não o tem, não entende a praxe em toda a sua dimensão por mais que se esforce."
E que espírito é esse? O que é preciso ter-se para se ser praxado? E como é que alguém sabe que tem esse espírito se assim que entra para a Universidade começa logo a ser praxado?

- "Mas também há ladrões e não é por isso que somos todos maus!".
Esta generalização sofre de falta de lógica. A comparação correcta seria com: "Mas também há ladrões e não é por isso que os ladrões são todos maus."
Mas porque roubam as pessoas?

- "Tal como entendo o lado dos 'anti-praxe'".
Estás muito longe de perceber o lado dos anti-praxe... bem como de perceber os mecanismos sociológicos de quem praxa e de quem se submete à praxe.

- "E quem não o tem, não entende a praxe em toda a sua dimensão por mais que se esforce".
Isto é o mesmo que querer retirar a validade científica de todas as ciências sociais. Um psicólogo precisa de ter uma determinada psicopatia para a compreender? Um antropólogo ou um sociólogo só podem estudar os grupos a que pertencem?