domingo, 12 de dezembro de 2010

"Nos passos de Torga"

Texto de Susana Branco, Fotografias de Humberto Almendra
12 de Dezembro, 2010
, publicado no jornal Sol


Nos passos de Torga Junto ao Mondego seguimos as pisadas do aluno e médico Adolfo Rocha e descobrimos a essência do escritor num percurso literário pela cidade dos estudantes e de Miguel Torga. Torga era um aficionado das tertúlias, contudo pouco dado às tradições académicas. 'Sempre combatera abertamente a praxe'. Reconstruimos a história e imaginamo-lo a tomar café no Arcádia e a entrar na Coimbra Editores, que lhe publicou os livros.

Recuamos uns metros, descendo pela ladeira do seminário, para ouvirmos uma passagem de A Criação do Mundo. O romance autobiográfico de Miguel Torga não sairá mais das mãos de Branca Gonçalves, que junto à casa com o número oito lê um breve trecho: «Para neutralizar de certo modo o meu desinteresse pela rotina universitária e contrariar a vida demasiado dispersiva da Tertúlia, instalaram-me na república Estrela de Alva, habitada por nortenhos rudes e aplicados».



É em 1925 que Torga chega a Coimbra. Filho de camponeses, nasceu a 12 de Agosto de 1907, em S. Martinho de Anta, no distrito de Vila Real, com o nome de baptismo de Adolfo Rocha. Depois de abandonar o seminário e de trabalhar como moço de recados numa casa de família do Porto, os pais mandam-no trabalhar na quinta de um tio, no Brasil. Como reconhecimento pelo seu trabalho, este oferece-lhe uma bolsa de estudos e envia-o para Coimbra. Tinha então 18 anos e a diferença dos sistemas de ensino obrigou-o a um processo escolar árduo. «Fiquei interno no Colégio de Santo António, lar e oficina pedagógica de Dr. Almeida. Um andar sujo, pobre, retalhado a canivete, onde o único traste que sorria era uma ardósia quando tinha contas a giz. Homem feito e de raça comprida, sentia certo constrangimento entre companheiros de 10 e 12 anos. O próprio director me dava pelo ombro. Mas não havia outro remédio senão começar pelo princípio», escreveu Torga.

Do outro lado da ladeira, à janela de uma residência universitária, algumas estudantes acompanham-nos neste prefácio à vida do escritor, cujos passos em Coimbra iremos seguir. Abandonamos, por isso, a antiga Estrela de Alva, onde viveu o autor «quando escolar de Medicina».

Adolfo Rocha ainda estudava quando publicou Ansiedade, o primeiro livro de versos. Só em 1934 é que adopta o pseudónimo de Miguel Torga: «Uma homenagem aos escritores Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno e à Torga, um arbusto transmontano que cria raízes profundas na terra, tal como a ligação de Torga à sua terra natal», revela Branca.

A caminho da universidade, percorremos o trajecto provável que Torga faria desde a república, optando pela travessia do Jardim Botânico, fiel à época. Paramos junto ao Instituto Botânico para dar novamente a palavra ao escritor que faz uma descrição soberba daquele lugar e do edifício - antigo Liceu D. João III - onde frequentou as aulas do sexto ano.

Já na zona alta da cidade, transpomos a porta férrea da velha Universidade de Coimbra onde, até meados do século XX, todas as faculdades funcionaram e Miguel Torga terminou a licenciatura em Medicina no ano de 1933. «Esta e a Porta Minerva, na zona baixa, delimitam a Universidade que à época fechava, tal qual uma escola, daí a designação de 'escolar'», explica a guia, referindo-se à citação da placa fixada na casa que serviu de residência estudantil ao escritor.

Torga era um aficionado das tertúlias, contudo pouco dado às tradições académicas: «Sempre combatera abertamente a praxe, e considerava a capa e batina símbolos anacrónicos dum passado morto», sublinha Branca em voz alta.



A descida panorâmica sobre o Mondego, pelas couraças de Lisboa e da Estrela, demora alguns minutos, mas o 'salto' na vida de Torga corresponde a alguns anos. O estudante tornou-se médico e, depois de um périplo profissional pela zona centro, instalou-se no Largo da Portagem. Em frente ao edifício, que hoje alberga um banco e várias empresas, a guia justifica a escolha do livro que trazia em mãos. «No 10.º ano entrevistei Torga, aqui mesmo no seu consultório. Começámos a fazer perguntas e ele, interrompendo-nos, perguntou se conhecíamos a sua obra. Dissemos que sim, que conhecíamos Os Bichos, e ele respondeu que se tivéssemos lido A Criação do Mundo não lhe faríamos semelhantes perguntas. Repetiu-o várias vezes!», conta. Branca acabou por ler a obra, a partir da qual dá hoje a conhecer o autor nesta Rota Torguiana. Reconstituímos a história e imaginamos o autor na rua Ferreira Borges, perpendicular, a tomar café no Arcádia, na Brasileira ou no Café Central, e a entrar na Coimbra Editora (que publicou os seus livros), ainda hoje a funcionar.

Já junto à margem do rio, alguém pergunta pelo memorial de homenagem ao escritor. Branca responde com um sorriso: «Está em cima dele!», olhando para uma passadeira em ardósia transmontana por debaixo dos nossos pés. «É como se fosse o olhar do poeta 'aprisionado' naquele consultório para as águas calmas do Mondego», diz a guia numa interpretação pessoal do monumento.

De autocarro fazemos o último troço do percurso até à casa onde Torga viveu entre 1953 e 1995, na zona dos Olivais. A funcionar desde há três anos como casa-museu, respira-se aqui a extensão humana do escritor, cuja vida e obra, mais do que conhecer, vivenciámos.

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