Mas choque para quem? Só para quem não está nem nunca esteve na escola! Só para quem pensa na escola como um micro-cosmos ou uma realidade social paralela e alheada de tudo o resto. Só para quem não quer ver o falhanço do modelo meritocrático, anti-democrático e profundamente exclusivo em que transformaram a escola pública. Penso que a única coisa que nos deveria chocar foi o aproveitamento mediático e o cavalgamento político da sempre “querida e bem-vinda” insegurança, ao melhor estilo da direita e da direitinha.
Desconstruindo o senso comum e as politiquices, analisando as implicações:
- todos os estudos apontam, baseados nos dados disponíveis sobre a violência escolar, que de facto o número de denúncias tem aumentado mas devido ao número de queixas efectivas (a discussão pública sobre o tema aumenta a consciencialização) e muito improvavelmente devido a um aumento efectivo de práticas violentas - cai por terra, portanto, o carácter alegadamente recente e de “onda” de violência veiculado
- mistura de atitudes completamente diferentes tão diferentes como a “não aceitação” de regras, a postura crítica, a indisciplina, o bullying e a violência - dando a ilusão que é tudo o mesmo e não analisando as motivações e as causas, assistimos hoje a um processo de “delinquentização” de tudo o que não se enquadra na norma e na conformidade
- naturalização (e generalização) dos fenómenos violentos tendo como perspectiva o contexto social, étnico, religioso e sexual da escola e dos seus alunos, ou seja, uma espécie de “só há violência porque são pobres, porque são pretos, porque são ciganos, porque são de más famílias, porque são mal educados, porque são rapazes, ou porque são maus alunos” – os estudos indicam, pelo contrário, que a violência é transversal às escolas com alunos de todos os estratos sociais (escolas onde predominam alunos de classe alta também têm estes problemas), etnias, religiões, sexo e percursos escolares
- ignora que democratização do acesso ao ensino não se traduziu numa democratização do sucesso escolar, do processo de aprendizagem e das sociabilizações dentro da escola - ocultando por isso a falência do actual modelo pedagógico, social e organizacional da escola
Ao contrário do que vemos, lemos e ouvimos vindo de todos os “pseudo-qualquer coisa” peritos em desinformação, não se pode negar o carácter multidimensional e variável da violência escolar e dos seus contextos.
Mas sem dúvida que o mais preocupante são as respostas que a sociedade, iludidada por este “senso-comum politicamente construído” e que baseia o seu apoio nos medos mais básicos e irracionais do ser-humano, se propõe na sua maioria a dar: a abordagem policial repressiva.
Em primeiro lugar importa dizer que esta abordagem denota desde logo a rejeição de toda a teoria e análise social, rejeita a pedagogia e rejeita a escola enquanto possível meio de resolução ou atenuação dos problemas sociais que a maior parte das vezes ela própria gera. Ela parte do princípio que a violência na escola é algo de externo a esta, algo que a “infecta”, e que atribui a minorias ou a maus alunos. É a resposta típica e generalizada do “sistema” quando não consegue dar resposta aos problemas que gera: reprimir, afastar, negligenciar. “Separar o trigo do joio”. E entretanto os vigilantes, os cartões de acesso, os polícias e as câmaras entram pela escola e são apresentados como “A solução” (o programa Escola Segura é disso um bom exemplo). Nada de novo: é a casa fortificada, a escola prisão, a Europa fortaleza. E no entretanto, temos toda uma geração a sociabilizar e a aprender a “cidadania” sob a batuta da vigilância e do policiamento…
A resposta e a proposta que temos que fazer é outra, diametralmente oposta, que vá ao fundo das questões. Por oposição ao policiamento temos que responder com um projecto de pedagogia (num sentido de interacção e de aprendizagem, não de paternalismo). É transformar a escola num espaço que promova não só a democratização do acesso mas sim a democratização do “sucesso” escolar, social e pessoal. Esse sucesso tem de ter muitas formas e muito diferentes, e consequentemente muitas formas de ser avaliado, opondo-se ao método meritocrático gerador de exclusões. Isso envolve a transformação radical da escola:
- integração dos estudantes na gestão das instituições da escola e no planeamento dos seus currículos
- novas e diferentes propostas e oportunidades formativas
- alteração da relação de autoridade baseada na dualidade do professor enquanto poder e mestre e o aluno enquanto subjugado e aprendiz
- boas condições materiais e físicas dos espaços e equipamentos
- professores motivados, com um contrato estável e com formação continuada
- recreios e os tempos livres como espaço de sociabilização e de aprendizagem da amizade, do amor, da cidadania, do livre pensamento, da crítica, da intervenção
- uma escola aberta à comunidade, que nela se quer inserir e intervir
Sim, de facto a sociedade está no seu todo mais violenta. Porque as explorações, as opressões e as contradições a isso conduzem. Mas negar a escola como ela própria co-geradora dos conflitos e problemas que nela se vivem, é aceitar que tudo está bem lá dentro. É aceitar que exclua quem não se adequa. É aceitar a escola enquanto selecção e reprodução. É aceitar a escola meritocrática, exclusiva, formatadora e autoritária. É abster-se de a querer transformar. Enfim, é aceitar tudo como está.
Então e a praxe? Embora com iconografias e simbologias diferentes, ela por aí anda no secundário e no superior. E onde se enquadra aqui todo o discurso sobre a violência? Onde estão os mesmos que tão violentamente atacam os que acusam de praticar a violência? Porque violenta para o corpo, para a mente, para as crenças, para os direitos e para as diferenças todos sabemos que a praxe é, embora nem todos o queiramos admitir.
Aqui se revela uma contradição fundamental. Aqueles que exigem a “tolerância zero” perante fenómenos extremos de manifestação de relações, tensões e injustiças sociais, como é o caso da violência nas escolas, são exactamente os mesmos que apologizam a praxe (e a violência que irremediavelmente a acompanha) enquanto processo uniformizador, integrante, estabilizador e conformista.
Não se trata, portanto, da violência em si mesma, mas sim do que ela significa e do que representa. Se representar a não aceitação, a manifestação, a expressão, o inconformismo, a explosão, então deve ser violentamente (mais uma vez) reprimida e afastada. Se for um Carnaval divertido, recambulesco, marialva, pimba, paternalista, sexista, racista, homofóbico, anti-democrático, hierárquico, e se ainda por cima for um negócio que rende muito dinheirinho aos compadrios, ora, como recusar fórmula tão apetecível? A violência é um excesso, indesejável mas que por vezes acontece, dizem eles… Sem o dizerem, dizem-no: a praxe é violência!
Cerra-se as fileiras, ordena-se que se acabe com os “excessos”: acaba-se com a violência visível e intensifica-se a violência silenciosa, modera-se o discurso e mantém-se as práticas.
Resumindo: é um projecto político, social e cultural, conservador e classista, para a escola.
Como transformar este projecto de escola que exclui e violenta, como combater a praxe normativa e integrativa, como o fazer tendo sempre em vista a transformação da escola, do meio e da sociedade, rompendo com os consensos, colectivamente, abertamente, propositivamente, provocativamente, inconformadamente, divertidamente e apelativamente? Acho que a resposta é só uma: com as mãos…e a mente! Reflexão e acção!