Agressores de praxe vão amanhã a julgamento
13.02.2008, Andreia Sanches
Sete jovens sentam-se no banco dos réus por terem praxado uma colega há mais de cinco anos na Escola Superior Agrária de Santarém
Tem sido descrito como um julgamento inédito: será a primeira vez que alguém se senta no banco dos réus por ter praxado alguém. Cinco homens e duas mulheres, com idades compreendidas entre os 27 e os 32 anos, respondem, a partir de amanhã, pelas praxes académicas em que participaram há mais de cinco anos, quando eram alunos da Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Santarém.
Ana Francisco Santos, hoje com 27 anos, era, naquele ano lectivo de 2002/03, uma das caloiras recém--chegadas ao curso de Engenharia Agro-Alimentar. Em Março de 2003, numa carta ao ministro do Ensino Superior, denunciou aquilo que classificou como os "castigos" a que foi sujeita durante os rituais académicos que considerou uma "tortura". E fez queixa à polícia.
"Seis dos arguidos são acusados em co-autoria e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física qualificada e um outro foi pronunciado por um crime de coacção", disse ao PÚBLICO Manuela Miranda, advogada que representa Ana Santos.
O juiz afecto à Instrução Criminal do Círculo de Santarém lembra, no despacho de pronúncia de seis dos sete jovens, que, como consequência das praxes a que foi sujeita, Ana Santos deixou de frequentar a Escola Superior Agrária de Santarém.
Já Lúcia Mata, advogada dos sete arguidos, diz que é convicção dos mesmos "que não praticaram nenhum ilícito penal". E garante que "eles nunca quiseram, de maneira alguma, ofender quem quer que fosse".
Todos eles, acrescenta, são hoje pessoas que "vivem a sua vida profissional e estão perfeitamente integrados".
Uma carta que chocou o país
Na carta que Ana Santos escreveu ao então ministro Pedro Lynce, e que foi divulgada pelo PÚBLICO em Março de 2003, a então caloira contava que os primeiros nove dias de praxes a que foi sujeita na escola foram duros - "21 horas diárias a sermos vítimas de praxes consecutivas".
Depois de uma sessão de dezenas de flexões, algumas correntes de ar, duas otites, vários trabalhos - "a fazer parecer trabalhos forçados" -, Ana teve que receber tratamento no Centro de Saúde de Santarém no dia 2 de Outubro de 2002. Mas não foi isso que a levou a apresentar queixa.
No dia 8 de Outubro desse ano foi conduzida com outros caloiros ("bestas", como eram chamados os alunos do 1.º ano, segundo explicava Ana Santos na carta ao ministro) para a Quinta do Bonito, propriedade da escola, a 30 quilómetros de Santarém, para apanhar nozes. Todos os alunos do 1.º ano estavam proibidos de atender chamadas de telemóvel. Mas Ana atendeu a mãe. E, de acordo com o que relatou, foi castigada por isso.
"Obrigaram-me a colocar na posição de "Elefante Pensador" (de joelhos, cabeça no chão e as mãos debaixo dos joelhos com as palmas viradas para cima), fui insultada por tempo que não consigo quantificar. Depois um veterano foi buscar dois sacos de esterco de porco", escreveu.
A seguir, foi esfregada com esterco - "camada sobre camada, esfregaram-me a cara, pescoço, peito, costas, barriga, cabelo". A tarefa foi levada a cabo também por alunos mais novos, sob as ordens de seis membros da comissão de praxes, contou: "Fiquei muito assustada, sem possibilidade de pedir apoio, perdi a noção do tempo, tive momentos em que já nem sabia onde estava".
Penas vão de multa a prisão
Ana Santos contou também que lhe foi ordenado para "ficar em pé a secar ao sol" e que foi pressionada a participar na praxe "pudim danone" - "as raparigas colocaram-se de gatas todas lado a lado, enquanto os rapazes tinham de simular o acto sexual com elas".
No mesmo dia, continuava Ana na exposição a Pedro Lynce, já na escola, um outro aluno veterano, que não era da comissão de praxes, decidiu praxá-la mais e pediu a dois caloiros que mergulhassem a cabeça dela num bacio com excrementos de vaca.
A carta divulgada teve grande impacto mediático até porque pouco tempo antes tinha sido tornado público nos media outra queixa de uma aluna do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros.
Os sete alunos chegaram a ser alvo de processo disciplinar. E o Instituto Politécnico de Santarém decidiu suspendê-los por 15 dias.
Na sua defesa, os seis alunos que estiveram na Quinta do Bonito alegaram que nada de ilícito tinham feito e também que "a posição de "Elefante Pensador" é diversas vezes prática durante a praxe, de forma a acalmar os caloiros, pois é uma posição que favorece o relaxamento dos músculos". Uma caloira ouvida no âmbito do processo garantiu, contudo, que é uma posição "bastante dolorosa".
Em Novembro de 2005, o Tribunal de Santarém pronunciou apenas os seis jovens da comissão de praxes pelo crime de ofensa à integridade física qualificada. Ana Santos recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que, em Março de 2007, decidiu pronunciar também o sétimo aluno, pelo crime de coacção.
Manuela Miranda lembra que "o que a Ana mais queria era que lhe tivessem apresentado um pedido de desculpas". Já Lúcia Mata diz que os sete jovens não fizeram nada de mal e "consideram que actuaram no sentido do respeito pela tradição".
De acordo com o Código Penal em vigor à data dos factos, o crime de coacção pode ser punido com pena de multa ou pena de prisão de até três anos. O de ofensa à integridade física qualificada pode ser punido com pena de multa ou de prisão de até quatro anos. A primeira audiência do julgamento está marcada para as 10h15 de amanhã no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santarém.
Para o Movimento Antitradição Académica, é um dia histórico: "Os crimes devem ser julgados e pela primeira vez reconheceu-se que nas praxes acontecem crimes", diz a dirigente Ana Feijão.
Vida em suspenso
Ana Santos mudou-se para Lisboa, ainda não conseguiu acabar o curso, custa-lhe falar do passado
Hoje tem 27 anos, não acabou o curso, os estudos esperam por melhores dias. Ana Francisco Santos, a aluna que em Março de 2003 se queixou de um grupo de colegas mais velhos na sequência das praxes a que foi sujeita, tem estado a aguardar que "isto chegue ao fim" e só quando "isto" - o processo judicial - tiver um desfecho é que acha que vai voltar a ter forças para se concentrar e prosseguir a licenciatura. "Gostava de ter sido mais forte para ultrapassar isto. Fiquei desmotivada..." A mãe, Virgínia Francisco, diz que a filha ficou com a "vida em suspenso".
Nos últimos anos, Ana trabalhou na caixa e no apoio ao cliente de uma cadeia de hipermercados em Lisboa, cidade para onde foi viver. Gostou muito, quer continuar e vai tentar articular o trabalho com a universidade. Já não pensa em desistir - chegou a pensar nisso, mas a mãe não deixou porque acha que não se tomam decisões importantes quando não se está bem.
Depois das praxes, muita coisa mudou. Por exemplo? Deixou de ser tão "expansiva" como era, "os inícios de ano lectivo são sempre dolorosos" - Ana diz que sente "o corpo todo a tremer" quando ouve falar em praxes, quando passam por ela caloiros a cantar às ordens de veteranos.
Regresso ao ano lectivo de 2002/2003: primeiro tentou esconder da mãe que desde as praxes a que tinha sido sujeita na Escola Agrária de Santarém nunca mais tinha conseguido sentir-se bem, que sempre que ia sozinha para a escola entrava pela porta das traseiras, que tinha medo e que se sentia humilhada. Depois desabafou e seguiu-se apoio psicológico, uma carta ao ministro, uma queixa na polícia, foi preciso recorrer a medicamentos para lidar com a angústia.
"Sentia-me olhada de lado, as pessoas não me falavam, no dia em que saiu a primeira notícia, no PÚBLICO [a 18 de Março de 2003], ouvi chamarem-me mentirosa." Acabou por abandonar Santarém sem se despedir de ninguém. Sentia que toda a gente achava que praxes é algo que se aguenta, não se denuncia. E por isso ainda hoje pensa duas vezes antes de falar do que se passou. Durante algum tempo voltou a Leiria, onde vive a mãe. Mas Pedro Lynce, então ministro do Ensino Superior, fez saber que estava disposto a, caso fosse necessário, criar uma vaga adicional para concretizar a transferência da aluna para outra escola - considerava que existia "fundamento" para que ela tivesse "um tratamento excepcional". No ano lectivo de 2003/04 Ana Santos foi estudar para Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia, onde continua inscrita.
"Não estou arrependida de ter feito queixa", garante, com os olhos abertos e um tom firme. "Mas custa-me tanto falar disto!"