domingo, 26 de fevereiro de 2012

Zeca Afonso e Coimbra

Já se sabia que a relação entre Zeca Afonso e Coimbra tinha sido difícil, como o próprio escreveu na sua autobiografia:
«Em Coimbra as coisas mudavam lentamente. Novas remessas de estudantes, menos pitorescos mas mais conscientes do que os do meu tempo, mais devotados aos problemas que fatalmente surgiam num meio sufocado por tradição, as mais das vezes inútil, intentam, à semelhança do que já outras gerações haviam feito, romper declaradamente com o bafio, pôr de parte a quinquilharia passadista do velho romantismo do «Penedo», realizar ao nível associativo uma modernização da vida académica dentro dos limites a que os forçava o estreito meio geográfico em que viviam.»
(...)
«Nalgumas andanças por Lisboa tomei esporádico contacto com outros meios estudantis. Rapazes novos, dinâmicos, combativos, de pés bem assentes na terra, com os quais, embora de uma forma efémera, muito me foi dado a aprender. Ganhei amizades, rejuvenesci e sobretudo senti na carne a urgência de alguns problemas que até então mal tinham afectado a minha maneira de ser.
Numa disposição de espírito muito diferente da que me levara a procurar fora de Coimbra uma largueza de horizontes que a cidade me negara, renovei um pouco o meu conhecimento dos homens e dos lugares.»
Mas parece que Coimbra também "ignorou e hostilizou" Zeca Afonso como nos conta Rui Pato:

Coimbra ignorou e hostilizou Zeca Afonso
Rui Pato participou em tertúlia que assinalou 25 anos da morte do cantor e garantiu que a cidade foi "madrasta" por considerar as suas baldas uma afronta à praxe


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Que se passa no Ensino Superior? (6)


A quinta coluna dos banqueiros nas universidades


“E, compreenda-se lá, há estudantes que defendem esta medida. Faz lembrar as manifestações na Índia, em que os membros das castas superiores contestavam a democratização do ensino superior porque entendiam que os membros das castas inferiores não deveriam ter direito a frequenta-lo. Na verdade, a elitização encaminha-nos nesse sentido. Não é por acaso que esta mentalidade se alastra pelo movimento associativo estudantil. Mas, como no passado, o ensino superior é um viveiro de contradições. E há quem resista.”
Há cinco anos, escrevi um artigo, publicado em resistir.info, que denunciava os empréstimos bancários a estudantes e que desmascarava a publicação da Associação Académica de Lisboa (AAL), o Semanário Académico de Lisboa (SAL), comprometido com os interesses dos principais bancos. Então, Ricardo Florêncio, director do pasquim corporativo e dirigente associativo da Escola Superior de Comunicação Social, lançou a ameaça de me levar a tribunal. Perante a notícia de hoje que dá conta de que os recém-licenciados devem 1,4 milhões à banca e que, sem emprego, não têm como os pagar, senti-me na obrigação de denunciar todos aqueles que, sendo dirigentes associativos, preferiram pôr-se ao lado dos banqueiros. Também eles são culpados.
Um semanário académico ao serviço do capital
O fosso entre o que diz a Constituição da República Portuguesa e a realidade do nosso país é o mesmo fosso que separa as necessidades do nosso povo e os interesses do capital. Quando, em 1974, o povo tomou as avenidas e ruas de Portugal, as forças políticas, ao lado do capital, fragilizadas, não tiveram outro remédio senão aprovar a carta magna mais progressista da Europa Ocidental desde a Comuna de Paris.

Frente à ignorância que verga os povos aos pés dos poderosos, a revolução de Abril resgatou o nosso povo do analfabetismo crónico. Deu-lhe instrumentos para acabar com a elitização do conhecimento e para democratizar o ensino. Na Constituição da República Portuguesa, há um artigo relativo ao ensino que estabelece que “todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar” e que indica, de seguida, que “na realização da política de ensino incumbe ao Estado: (…) estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino”.
No final dos anos 80, depois da recuperação, por parte do capital, do poder económico e político, surgem as ideias sobre a possibilidade de se cobrarem propinas. Cavaco Silva, então primeiro-ministro, tenta calar os estudantes à bastonada e fracassa. António Guterres, que na campanha eleitoral afirma estar contra as propinas, acaba por vencer. Na primeira oportunidade, apresentou e aprovou a lei que regulamenta a existência de propinas no ensino superior. Depois foi o que se viu, as propinas viram sucessivos aumentos e o investimento estatal no ensino viu sucessivas reduções.
Desde então, a condição de classe voltou a ser uma barreira no acesso ao ensino superior. O ingresso numa universidade ou num instituto politécnico passou a depender do peso dos bolsos dos nossos pais. Como antigamente. Milhares de estudantes abandonam o ensino superior e outros tantos nem se dão ao trabalho de se candidatarem. É que mesmo a acção social, usada pelos defensores das propinas como argumento de que há um instrumento que ajuda os estudantes mais carenciados, tem sido alvo de sucessivos desinvestimentos.
Mas agora há uma novidade. O governo decidiu importar da Alemanha uma medida que vai revolucionar o ensino superior. E não, não se trata do valor do salário mínimo alemão. Tratam-se dos empréstimos bancários a estudantes. De uma cajadada só, matam-se dois coelhos. Por um lado, pode acabar-se com a acção social e, por outro, abre-se caminho aos bancos para um grande negócio. Ou seja, os licenciados com carências económicas entram directamente para o mundo do desemprego pela porta grande. Não só desempregados mas também já endividados.
E, compreenda-se lá, há estudantes que defendem esta medida. Faz lembrar as manifestações na Índia, em que os membros das castas superiores contestavam a democratização do ensino superior porque entendiam que os membros das castas inferiores não deveriam ter direito a frequenta-lo. Na verdade, a elitização encaminha-nos nesse sentido. Não é por acaso que esta mentalidade se alastra pelo movimento associativo estudantil. Mas, como no passado, o ensino superior é um viveiro de contradições. E há quem resista.
Não é o caso do Semanário Académico de Lisboa ( SAL ). Há uns meses, faziam uma espécie de roteiro do Processo de Bolonha, onde havia lugar para todos os elogios. Não foram muito originais porque destacaram a mesma mentira que todos os outros: de que agora é possível estudarmos em qualquer lugar da Europa sem os entraves de um ensino superior europeu diferenciado. Pois. Mas, como todos os outros, esqueceram-se de referir que só os ricos o podem fazer.
Se há coisa de que não se pode acusar o SAL é a de esconder a sua orientação política. Pela sua frontalidade, merece o elogio de todos os estudantes. Ao contrário da maioria da comunicação social portuguesa, o SAL marca a diferença e indica o caminho. Onde os outros mascaram a objectividade e a imparcialidade, o SAL, despe-se, sem sombra de pudor, e dá-se a conhecer como é: um jornal formado pela Associação Académica de Lisboa, que poucas vezes esteve ao lado dos interesses dos estudantes; um jornal conduzido por um dirigente associativo, Ricardo Florêncio, que nunca correspondeu ao papel histórico do movimento associativo estudantil; um jornal que é o porta-voz da quinta coluna do poder no mundo académico de Lisboa.
Na sua edição de 13 de Novembro, o SAL anunciava “Santander Totta com primeiros contratos para empréstimos para estudantes”. Na mesma notícia, debaixo do título, o logotipo do Grupo Santander surgia bem maior do que o tamanho do próprio artigo. Será desnecessário dizer-se que em momento algum se lê a opinião de alguém com uma opinião critica sobre o assunto e que o que sobra para a história são os sucessivos elogios do jornalista e das fontes. Uma forma sóbria e rigorosa de se fazer publicidade a uma empresa e a uma medida política.
Na semana seguinte, o SAL faz sair o seu 8º número e lança-se no desafio de ultrapassar as fronteiras da arte de fazer propaganda. E foram bem sucedidos. Na capa, surge um mealheiro, provavelmente, numa referência ao dinheiro que os bancos irão amealhar, e o título “Empréstimos para o superior/O SALx faz as comparações”. Logo na segunda página, um artigo a abrir que refere que “os empréstimos oferecem ainda mais duas vantagens para os estudantes”. E, de seguida, uma entrevista ao Millenium BCP, na qual o banco explana a sua missão de ajudar os jovens “nas necessidades e nos sonhos que eles têm”.
Mas eis que aparece numa caixa o seguinte inquérito: “Dá-nos a tua opinião. Consideras útil a existência deste crédito?/Os teus comentários também contam!” Para além de explicar que podemos enviar uma mensagem escrita para o número indicado, Ricardo Florêncio e companhia dão-nos o exemplo de como pode ser a opinião. “SALx, não só concordo como acredito que é um enorme passo para o Ensino Superior…etc…etc”.
A página seguinte repete a entrevista a bancos. Neste caso, ao Grupo Santander e à Caixa Geral de Depósitos. Ambos discorrem sobre a natureza humana das suas acções de apoio aos estudantes. O Grupo Santander um pouco mais porque tem mais espaço de propaganda que os dois outros bancos. Sinceramente, talvez por ingenuidade, não se percebia o porquê desta obstinação com o Grupo Santander, até que li a contra-capa. E em toda a largura da folha, lá estava: “Pensa no curso e deixa as notas connosco – SantanderTotta, o valor das ideias”.