Uma realidade que já se esperava: os empréstimos bancários não são uma boa maneira de financiar o ensino superior. São apenas uma boa maneira de prender pessoas cada vez mais jovens aos bancos, para o resto da sua vida. É claro que ia ser (e vai ser, se continuar) dramático para muita pobre gente. Cortar nas bolsas ao mesmo tempo foi o golpe que tornou óbvia a agenda ideológica.
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Segue notícia do Público.
O nó cego da vida de estudante, sem emprego e com uma dívida para pagar ao banco
11.11.2012 - 09:05
Por Catarina Fernandes Martins
Desde que em 2007 foi criado o sistema de empréstimos estudantis com
garantia governamental já foram concedidos mais de 202 milhões de euros a
17.750 alunos. A maioria daqueles que contrai um empréstimo tem até 23
anos. Com o desemprego jovem nos 35,9%, alguns têm dificuldade em pagar
os milhares de euros que devem ao banco.
Tiago Teixeira devia ter começado em Setembro o segundo ano do Mestrado
em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra, mas em vez
disso, voltou para a casa dos pais, em Guimarães e agora procura,
desesperado, um trabalho.Em Novembro de 2010, aluno do último
ano da licenciatura em Jornalismo, pediu um empréstimo para poder
terminar o curso. Já licenciado, decidiu continuar os estudos e
inscreveu-se no mestrado, que teve de suspender por não ter capacidade
financeira para pagar alojamento, alimentação e estudos e os 4200 euros
que em breve terá de começar a pagar de volta ao banco, agora que o
período de carência do empréstimo terminou.
Tiago tem 21 anos,
uma licenciatura e um “grande sentimento de impotência”. Sabia que ia
ser difícil encontrar um trabalho na área da sua formação, uma vez que
“o jornalismo está pela hora da morte”.
Não pensou que fosse tão
complicado empregar-se num restaurante, numa loja de roupa ou numa loja
de electrodomésticos. Quando entrega currículos ouve duas respostas:
“tem formação a mais” ou “estamos a reduzir pessoal”.
“É uma
perspectiva muito negra. Não consigo arranjar emprego para ter dinheiro
para mim. Não consigo arranjar emprego para pagar o empréstimo. Não sei
como vou sair deste buraco”, lamenta.
Tiago percebeu que quando
chegasse o momento de começar a pagar o empréstimo não teria o dinheiro
necessário e por isso foi ao banco pedir um adiamento do momento em que
tem de começar a pagar. Disseram-lhe para escrever uma carta a explicar a
sua situação e que iriam avaliá-la. Ainda não começou a pagar o
empréstimo, mas também não sabe se o seu pedido foi aceite.
Em
Portugal, depois de uma primeira tentativa de criação de um regime de
crédito bonificado para os estudantes do ensino superior em 1999, que
não teve muito sucesso, a implementação de um sistema de empréstimos só
se concretizou em Setembro de 2007, altura em que o Governo português
lançou um novo sistema de empréstimos estudantis com garantia
governamental.
De acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior, “pretendeu-se aproveitar o sistema de garantia já
desenvolvido no país, em que as sociedades de garantia mútua são contra
garantidas por um fundo público, o Fundo de Garantia Mútuo, gerido pela
sociedade gestora do Fundo – a SPGM – para efeitos de promoção do acesso
ao ensino superior.
A linha de crédito para estudantes com
garantia mútua foi criada numa parceria do Ministério de Educação com
nove bancos. Os estudantes podem pedir entre mil e cinco mil euros por
cada ano de curso, num máximo de 25 mil euros a dividir por cinco anos.
Enquanto estão a estudar e durante o primeiro ano a seguir ao final do
curso – o chamado período de carência - os estudantes só pagam juros.
Têm, depois, entre cinco a dez anos para pagar a totalidade do
empréstimo.
Segundo a SPGM, desde 2007/2008, ano em que se
iniciou este sistema de empréstimos juvenis, já foram concedidos mais de
202 milhões de euros a 17.750 alunos, o que corresponde a cerca de 4%
da população que frequenta o ensino superior.
Em 2011 a SPGM
apresentou um relatório feito com base nos resultados de um inquérito
aos estudantes que recorreram ao sistema de empréstimos com garantia
mútua. Nesse estudo é possível perceber que a maioria (68,5%) dos
estudantes que fazem um empréstimo tem até 23 anos.
O ano lectivo de 2010/2011 foi aquele em que mais estudantes foram apoiados, com um total de 4537 empréstimos feitos.
Nos cinco anos de duração deste programa, o número de incumprimentos acumulado é de 2.884.790.
“Não podemos dizer que em Portugal houve uma
adesão massiva aos empréstimos”, afirma Luísa Cerdeira, pró-reitora da
Universidade de Lisboa e autora de uma tese de doutoramento sobre o
financiamento do ensino superior português, onde procurou perceber até
que ponto os custos de educação e de vida dos estudantes podem fomentar
ou travar a acessibilidade ao ensino superior.Segundo a investigadora,
muitos dos que procuraram empréstimos “foram empurrados por não terem
bolsa”.
No estudo da SPGM, cerca de um terço dos inquiridos (31,4%) responderam também usufruir de uma bolsa de acção social.
“A bolsa mínima só paga as propinas e para sobreviver, os estudantes têm de pedir um empréstimo”, explica a Luísa Cerdeira.
Uma decisão adulta e inocenteQuando
se inscreveu na licenciatura em Audiovisual e Multimédia na Escola
Superior de Comunicação Social, em Lisboa, em 2008, Andreia Dinis, 23
anos, foi ao banco pedir um empréstimo. Andreia nem se quer tinha
conhecimento do crédito com garantia mútua em que o Estado é o fiador,
por isso fez um empréstimo normal.
Na altura, disseram-lhe: “é o dever dos teus pais pagarem-te o curso”.
“Porque é que é dever dos meus pais”, perguntou? E pensou para ela própria: “Sou adulta. Tenho mãos e pés. Vou trabalhar”.
Nas
primeiras semanas de aulas, convenceu-se de que o curso que tinha
escolhido era caro – entre propinas e materiais, pensou que o que
recebia do trabalho no call center não iria chegar.
Os pais de
Andreia têm uma vida modesta. A mãe trabalha como empregada doméstica e o
pai é empregado de balcão. Se Andreia pedisse, eles fariam de tudo para
ajudá-la, diz. Mas a perspectiva de ser um encargo incomodou-a e
Andreia não conseguiu evitar pensar em tudo o que poderia correr mal: e
se os pais ficassem desempregados? E se os avós ficassem doentes? E se o
pai (doente renal) ficasse tão doente que não podia continuar a
trabalhar?
Andreia pensou no futuro de todos. Só não pensou no seu futuro com aquela dívida. “Foi uma decisão adulta, mas inocente”, diz.
Quatro
anos depois, Andreia mudou de curso (estuda História de Arte na
Universidade Nova de Lisboa) e há um ano que paga 277 euros por mês.
Trabalha num call center e está à procura de outro trabalho. Tem enviado
currículos, mas ainda não encontrou um segundo emprego.
Com uma
dívida de mais de 17 mil euros para pagar, Andreia está arrependida:
“Fui ingénua. Nunca deveria ter feito este empréstimo: é uma pequena
maldiçãozinha que está sempre comigo”.
Luísa Cerdeira concorda
com a ideia de que alguns jovens não sabem tudo o que deviam saber
quando fazem um empréstimo: “Quanto mais jovens, menos conhecimentos
têm”.
Para a investigadora, esta situação agrava-se quando se
trata de alunos carenciados, que, muitas vezes “não têm percepção do
endividamento, nem literacia financeira”. Por isso mesmo, pensa que os
empréstimos a alunos com maiores dificuldades devem ser vistos com muita
cautela. “Para apoiar as classes desfavorecidas deve recorrer-se a
bolsas”, defende.
Um dos perigos, explica Luísa Cerdeira, é que
os jovens não compreendam que se trata de um empréstimo bancário, com
consequências em caso de incumprimento: “É bom que os jovens não
entendam estes empréstimos como bolsas. Se não pagar, o estudante fica
na lista do Banco de Portugal como devedor. Acontece aquilo que acontece
a qualquer mau, ainda que neste caso involuntário, pagador: o banco não
vai perdoar o empréstimo”.
Se não tiver emprego, não pagoPara
Ricardo Canha parece lógica a situação em que se encontra: “Se querem
que eu pague, tenho de ter emprego. Se não tiver emprego, não pago”.
Ricardo
tem 24 anos e é finalista de Medicina Veterinária na Universidade
Técnica de Lisboa. Chumbou no primeiro ano, porque teve uma depressão.
No segundo, o banco manteve o empréstimo.
Pensou que não haveria problema e que o
empréstimo se estenderia por mais um ano. Isso não aconteceu e por isso,
em Novembro deixou de receber os 300 euros que todos os meses recebia
emprestados e que usava para pagar transportes, alimentação e material
de estudo. Agora, Ricardo vive apenas com a bolsa de apoio social, o que
significa que tem direito a 220 euros mais a residência universitária
onde vive.“Quando chumbei pensei que me dessem ao menos mais um ano de
carência. Não é que omitam informação, mas também não dizem. Parti do
princípio que sim”, explica.
Já telefonou para o banco a pedir a
extensão do período de carência, mas disseram-lhe que não. Agora planeia
ir ao banco pessoalmente e explicar a sua situação. “Não te podes
rebaixar perante eles”, diz.
No inquérito encomendado pela SPGM
são apresentadas algumas sugestões feitas pelos estudantes com base na
sua utilização do sistema de empréstimos.
A principal sugestão
dos estudantes prende-se com a redução do valor dos juros, mas há quem
proponha a possibilidade de renegociar prazos, juros e pagamentos, de
forma a ter em conta alterações na situação social ou escolar dos jovens
(por exemplo, chumbar um ano ou não encontrar trabalho após a conclusão
do curso).
Luísa Cerdeira não acredita que haja uma revisão do programa para aligeirar as condições.
Em
Portugal, a única modalidade de empréstimos a estudantes disponível é a
dos empréstimos convencionais ou hipotecários, que se caracterizam por
terem uma taxa de juro anual, um calendário de pagamentos e uma
modalidade de pagamento.
Em países como o Reino Unido ou a
Suécia, por exemplo, é praticada outra modalidade, a dos empréstimos
dependentes do rendimento do diplomado, em que o estudante, depois de
encontrar um trabalho, paga uma percentagem do seu rendimento até que
uma destas situações se verifique: o empréstimo e os juros são
liquidados; o devedor paga uma quantia máxima; atinge-se um número
máximo de anos e os detentores de rendimentos mais baixos ficam livres
do empréstimo.
Para Luísa Cerdeira, o sistema convencional é “mais prudente porque não se esconde que é um empréstimo”.
Contudo,
continua, “se o nosso Governo tivesse condições (e não tem), um sistema
híbrido [em que há a opção de, em anos de baixos rendimentos devido a
desemprego, o devedor efectuar pagamentos condicionados aos rendimentos
desses anos, em vez de estar obrigado a um sistema fixo de pagamentos]
seria vantajoso para ajudar os diplomados em situações de desemprego ou
com salários abaixo de um certo nível”.
Acabo o curso, arranjo um emprego, pago o empréstimoUma
das conclusões apresentadas na tese de Luísa Cerdeira, publicada em
2008, era a de que os diplomados entravam directamente no mercado de
trabalho ou não passavam mais de 12 meses à procura de emprego, o que
viabilizava o processo de reembolso do empréstimo.
Em 2006/2007
(quando surgiu o programa de empréstimos) o tempo de espera médio para
arranjar emprego era consentâneo com o período de carência (1 ano).
Agora, já não é assim. “A entrada na vida activa é muito difícil. Dentro da área é ainda mais difícil”, explica Luísa Cerdeira.
Actualmente, o desemprego jovem está nos 35,9%. Entre os licenciados, a taxa de desemprego é de 10,2%.
Quando
em 2007 Ricardo pediu 17 mil euros emprestados através do crédito com
garantia mútua em que o Estado é fiador, pensou que a sua vida seguiria
uma trajectória linear: “quando acabar o curso, arranjo um emprego e
pago o empréstimo”.
Desde Setembro que envia CV, na esperança de
encontrar um emprego que o ajude agora que deixou de receber dinheiro do
banco. Tentou supermercados, call centers, cadeias de restauração...
Mas “está muito difícil”.
Ricardo espera encontrar um emprego que
lhe permita trabalhar nos dias em que tem aulas teóricas para não
prejudicar demasiado os estudos.
No próximo ano, para além de não receber o
empréstimo, terá de começar a pagar aquilo que deve. Não sabe como vai
conciliar um trabalho a tempo inteiro com o ano de estágio que o
espera.Um dos maiores receios de Ricardo é o de ser obrigado a ficar
afastado da sua área de estudos durante muito tempo, acabando por não
conseguir encontrar um emprego relacionado com Medicina e Veterinária.
Luísa
Cerdeira acha que a preocupação de Ricardo é justificada. É frequente
que alguns jovens tenham de trabalhar para pagar o empréstimo: “Para
pagar o empréstimo, têm de trabalhar num call center e se calhar fazem
umas horas ao fim-de-semana num supermercado. Durante esse tempo, não se
vão concentrar em procurar emprego na sua área”, diz a investigadora.
E isso “é um perigo”, conclui.