Jornal da Madeira / Região / 2011-11-07
por Cristina Sousa
Um «referencial de conduta e de inserção» legitimado pela universidade, à semelhança do que acontece no Exército
A praxe académica é relativamente recente na Madeira, mas assume as mesmas características das praxes no continente, que nasceram há mais de três séculos, em Coimbra.
Fazendo parte de um processo de construção de identidade, de alguma forma relacionada com a cultura letrada, a praxe é, de acordo com o sociólogo Ricardo Fabrício um fenómeno que, com a proliferação das universidades, «pode ter vindo a ficar descontrolado».
Embora a sua prática se justifique por ser uma forma de integrar os novos alunos, a praxe é, no entanto «um pretexto para a festa e para afirmar poderes superiores (nomeadamente daqueles que dinamizam as actividades)», adiantou, explicando que o fenómeno faz parte das actividades típicas de academia, «que são extraordinariamente estruturadas, onde existem poderes relativamente definidos, previamente consignados».
Quer isto dizer que, dentro do funcionamento da academia, este é um jogo daqueles que vão ser agora praxados e que haverão de reproduzir no futuro aos novos caloiros e, nesse sentido, «é claramente um processo de reprodução social».
«É como que um reflexo em cascata daquilo que se passa dentro de uma instituição que para nós é conservadora, tem as suas regras e obedece a uma determinada estratificação», salientou o sociólogo, professor na Universidade da Madeira (UMa).
A este respeito fez notar que as universidades têm uma série de «processos extraordinariamente conservadores e normalizados» e, nesse sentido, a praxe, como um referencial de conduta e de inserção, faz parte desse meio e «é legitimado pela própria instituição, da mesma forma que no Exército, por exemplo, sabe-se que determinados ramos militares têm tradições deste tipo e umas mais violentas que outras».
Consequências podem ser mais ou menos positivas
Não há conhecimento de que uma praxe feita na Madeira tivesse tido consequências dramáticas. Todavia, a nível nacional, estas acabam, embora esporadicamente, de forma dramática.
A praxe pode ter consequências que podem ser mais ou menos positivas. Tudo depende das pessoas e das próprias praxes. Ricardo Fabrício faz notar que «as praxes, em alguns contextos, têm contornos abusivos, sobretudo tendo em consideração aquela que é a margem de manobra do indivíduo nem sempre é convenientemente assegurada». A este respeito, adiantou que as consequências físicas até podem estar acauteladas mas quanto entramos em domínios de violência psicológica, poderá ter consequências para o resto da vida.
Para o sociólogo, professor na UMa, a praxe envolve uma série de «iniciativas com o seu quê de circense, mais do que violento do ponto de vista físico, e que, admito, tenha como propósito ajudar a integração de alguém num determinado meio».
Podemos ter duas perspectivas deste fenómeno, adianta: As pessoas que não gostam da praxe académica (que não gostam de se exibir e não gostam que se dêem por elas) e as pessoas que são mais complacentes com a mesma, que compreendem, e até, eventualmente, a admiram. «Estamos num território, pouco estruturado», concluiu.
Fenómeno tem diferentes modelos na Europa
Praxes já acabaram em Tribunal e foram suspensas
Os rituais destinados aos novos alunos da universidade foram muitas vezes marcados por alguma dose de violência, várias vezes postos em causa e até proibidos durante anos. No continente, já se deram situações verdadeiramente dramáticas, tento causado vítimas (o primeiro relato data de 1727, coma morte de um aluno, em Coimbra, tendo na altura D. João V proibido as investidas feitas pelos veteranos: «Hey por bem e mando que todo e qualquer estudante que por obra ou palavra ofender a outro com o pretexto de novato, ainda que seja levemente, lhe sejam riscados os cursos») e alguns dos casos, mais recentemente, foram levados a Tribunal.
Fenómeno complexo do ponto de vista da sua durabilidade
Ricardo Fabrício é da opinião que a praxe é um «ritual que é capaz de estar estendido no tempo, durante um período excessivamente longo». «Creio que para fazer essa abordagem de integração, não seria necessária tanta complexidade festiva e, na verdade, ela tem alguma complexidade do ponto de vista da duração dos eventos», referiu, considerando mesmo não ter a certeza de esta ser a abordagem mais adequada para pessoas que vão para o Ensino Superior. «Mas as pessoas submetem-se e legitimam-nas e depois vão perdurando de acordo com os apoios que encontram», manifestou.
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