domingo, 3 de outubro de 2010

Treze proposições sobre a "praxe académica"


O UELine, site da Universidade de Évora tem um espaço onde diversos membros da Universidade expressam a sua opinião sobre a praxe. Deixamos aqui o primeiro desses textos:

Treze proposições sobre a "praxe académica", são motivo do texto do Prof. João Príncipe, docente do Departamento de Física da UE. Praxe, integração ou humilhação? Está lançado o debate.

Treze proposições sobre a "praxe académica"

I - Independentemente da posição mais ou menos favorável sobre a utilidade da praxe é fundamental ter um conhecimento de familiaridade, baseado na observação directa, com a multiplicidade dos comportamentos envolvidos.

II - Trata-se de comportamentos colectivos relativamente ritualizados. A liturgia envolvida mergulha em comportamentos ancestrais que lhe dão uma aparência e justificação institucionais.

III - Na origem e estrutura opõem-se aos valores da cidadania, da democracia e às noções que fundam a ideia de estado de Direito.

IV - É impossível justificar de modo lógico e articulado a compatibilidade de muitos dos comportamentos típicos da praxe com qualquer teoria ética ligada à ideia de objectividade do comportamento, de imperativo categórico. Na praxe o que é de facto opõe-se ao que é de direito.

V - Os actos de humilhação baseados na imposição de tarefas desagradáveis ou difíceis não utilizam habitualmente elementos da Cultura, na acepção erudita (não sociológica) do termo. Não se exige por exemplo: declamar o primeiro canto dos Lusíadas, escrever em grego antigo o início da Odisseia ou o livro VII da República de Platão; ler os prefácios da Crítica da razão Pura ou uma parte do Capital de Marx; enunciar a demonstração do teorema da função implícita em espaços de Banach; etc.

VI - Em muitos actos de praxe são invocados fantasmas colectivos, preconceitos primários. São comportamentos onde o que é Totem (o que é adorado e imposto socialmente) e o que é Tabu (o interdito) são fundamentais. As relações de poder reais ou sentidas como reais, a sexualidade (nas vertentes perversas ou problemáticas: machismo grosseiro, homofobia, incapacidade de estar bem com os outros, jejum mais ou menos forçado, etc.) são temas recorrentes. O lado altamente implícito destes comportamentos, que vivem de uma incapacidade de os explicitar racionalmente na sua complexidade, favorece a fragmentação do psiquismo dos praticantes.

VII - O que sucede na praxe deixa, em geral, uma marca indelével na memória das vítimas. Raramente uma aula ou um contacto, como se usa dizer modernamente, entre professor e aluno deixa uma marca tão intensa. Estamos pois num campo onde as energias psíquicas envolvidas são fortíssimas e onde a Psicologia do Inconsciente tem o seu domínio.

VIII - A comparação com rituais de iniciação é interessante sobretudo para verificar os desvios em relação ao ideal-tipo inspirado em culturas tradicionais fechadas. Em particular, é evidente que as práticas da praxe não permitem a promoção à categoria de adulto, nem à de bacharel de Coimbra dos séculos XIX ou anteriores.

IX - A questão de quem é favorecido com a praxe é importante. Muitos recolhem recompensas (perversas) de humilhar o próximo e de sentir a ressonância e o florescimento da mediocridade e da grosseria. Sem cair em fácil teoria da conspiração (formação de uma guarda pretoriana informal) importa pensar se as praxes não favorecem o status quo.

X - Importa avaliar com lucidez os prejuízos para a aprendizagem e para a (iniciação à) prática da cidadania. A duração, menor ou maior, deve ser considerada. A comparação com outras instituições congéneres impõe-se.

XI - A integração dos novos colegas é invocado como o grande argumento da racionalização justificativa da praxe. Ela não permite de todo explicar as práticas reais. É um facto que uma parte dos alunos praxados, sabendo que dentro de dois anos podem inverter papeis, afirma gostar da praxe. Infelizmente esse gosto é sem estrutura pois o processo, do ponto de vista da psicologia do individuo, é bem mais de fragmentação do que de integração da personalidade.

XII - Aqueles que pensam demasiado rebuscados os argumentos filosóficos e o apelo a estudos de ciências sociais e que percebem diariamente possuir o sentimento instintivo da justiça e da humanidade, ou seja aqueles que se condoem com o sofrimento alheio, devem seguir a voz do seu coração e intervir na medida das suas possibilidades e convicções.

XIII - Dados os objectivos superiores da UNIVERSIDADE, velha de mil anos e devedora do racionalismo rico da Filosofia antiga, só a compreensão racional e a acção (correctora e verdadeiramente integradora) baseada nas noções do Direito têm a dignidade e a potência (dynamis) para tratar a problemática e criar a harmonia com esses objectivos.


Évora, 10 de Outubro de 2007

João Príncipe | Departamento de Física

5 comentários:

Anónimo disse...

Tudo isto é praticamente decalcado da tese do António Manuel Revez sobre a praze em Évora...
Nada de novo!!!

Anónimo disse...

E a praxe? É nova? Ou é uma tradição "secular"?

Anónimo disse...

O propósito da praxe não é integrar os alunos, a integração decorre inevitavelmente do tempo que passam todos juntos na praxe, como é natural. Isso é o que nós dizemos a quem sinceramente não percebe nada disto, do que é a praxe, porque não a viveu ou então porque a viveu numa universidade com pouca história e tradição praxística e de bons custumes.

O objectivo da praxe final é crescermos como pessoas. Não como cidadãos (pra isso temos os pais e professores), não como idealistas políticos (pra isso existem os devidos cursos e órgãos políticos de juventude), nem como sabedores da cultura do nosso povo (pra isso temos os museus, o turismo nacional, as escolas/faculdades e enciclopédias nas livrarias).

Na praxe aprende-se a respeitar (não a humilhar) uma pessoa mesmo que não se goste dessa pessoa, o respeito está acima de tudo. Na praxe aprende-se a ser humilde e a acatar as ordens de quem nos é superior, bem como a ter cuidado com as ordens que se dá aos inferiores, ensinando também por isso a responsabilidade. E na praxe aprende-se a ser solidário com os nossos iguais, aprendemos o que realmente significa ser UM e de quanta força e respeito transmite a União.

Que ninguém me venha com tretas de que somos todos iguais porque na nossa sociedade somos todos diferentes. O dono não é igual ao patrão, o patrão não é igual ao chefe, o chefe não é igual ao empregado. Vivemos num mundo em que se não comemos e calamos facilmente nos põem na rua e vêm-me dizer que existe democracia? Onde é que numa empresa, de qualquer ramo que seja, há democracia??? Digam-me onde porque até hoje não vi nenhuma!

A praxe é opressiva? Não, mas exige respeito e humildade para desempenhar a sua função e não aspirar a outra a não ser no seu devido tempo e com o devido esforço e respeito.

Alguém tem alguma coisa a acrescentar?

Ricardo

Anónimo disse...

Ó Ricardo, eu para crescer não sou praxado, como danoninhos.

Anónimo disse...

Claro que não. Nem eu disse que precisavas da praxe para crescer.

Simplesmente é o propósito dela.

É como a questão da moda: "Eu podia viver sem Praxe? Podia, mas não era a mesma coisa"

;)

Ricardo