Um post para ler no ladrões de bicicleta:
Uma fraude muito conveniente
por Nuno Serra, em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt, dia 5.12.12
2. O que terá levado os autores a pensar que «o aumento do número de vagas parece ser consequência da lei n.º 113/97» (desencadeando supostamente uma inversão de trajectória no «mercado de ensino superior»), é porventura outra coisa: a evolução da relação entre o número de vagas e de candidatos (gráfico aqui ao lado). Sucede, porém, que a dita inversão tem início em 1996 e resulta essencialmente de uma quebra acentuada do número de candidatos a partir de 1995, ao mesmo tempo que o número de vagas continua a aumentar. O ano de 1997 não traduz portanto, novamente, nenhum ponto de viragem e, por isso, a tese dos impactos positivos da introdução de propinas na expansão do ensino superior sai, uma vez mais, gorada (*).
3. No referido relatório síntese, os autores procuram ainda concretizar o efeito das receitas próprias no aumento do número de vagas, chegando a afirmar que «a reintrodução de propinas em 1997 trouxe um claro benefício para as instituições já que as suas receitas tiveram um aumento significativo, passando de 1,2 milhões de euros em 1996 para 58,3 milhões de euros em 1997». Pois é, mas não apresentando dados sobre o quadro global de fontes de financiamento, os autores não esclarecem se essa receita foi efectivamente uma receita adicional (nem qual o seu peso relativo), ou se terá sido «descontada» nas transferências do Orçamento de Estado, como começou tendencialmente a suceder após a introdução e aumento progressivo das receitas provenientes de propinas. E ignoram, acrescidamente, que embora 1997 seja o ano em que o aumento do número de vagas ultrapassa os 10% (gráfico aqui ao lado), é também a partir daí que o aumento da oferta cresce a um ritmo cada vez menor, para começar a estabilizar progressivamente (no ensino público) até 2006. O que desmente, de forma inequívoca, a suposta relação de causalidade entre a introdução das propinas e a expansão da oferta no ensino superior público.
4. No âmbito dos benefícios da introdução de propinas para os cidadãos, os autores limitam-se a constatar evidências (como a «menor probabilidade de estar desempregado» após a frequência de um curso superior, ou a «a obtenção de remunerações mais elevadas», com benefícios indirectos nas receitas do Estado), afirmando que «mesmo que se tenha registado uma diminuição [dos] benefícios individuais com a reintrodução das propinas, estes são ainda substanciais e tornam altamente rentável, numa perspectiva individual, o investimento em educação, designadamente no ensino superior». Mas, estranhamente, não reservam uma palavra - neste relatório síntese - para as crescentes dificuldades financeiras com que se depara um número crescente de alunos, e que tem levado muitos deles a abandonar o ensino superior.
Atendendo à entidade que encomendou o estudo (a Fundação Pingo Doce) e à entidade que o elaborou (a Universidade Católica, cujo interesse no desmantelamento do ensino superior público é bem conhecido), é legítimo pensar-se que não estamos perante uma fraude científica resultante de simples incompetência ou ligeireza académica. Antes assim fosse, pois tudo leva a crer que esta manobra de propaganda pelo «elogio da introdução de propinas no ensino superior» comporta objectivos estratégicos de outra natureza. O estudo é de facto, nos tempos que correm, uma fraude bem conveniente.
(*) Não deixa de ser particularmente revelador da «qualidade» do trabalho o facto de os investigadores da Universidade Católica usarem séries de dados com início em 1995, argumentando que a «informação estatística sistematizada, no que toca ao ensino superior português, só existir de forma publicamente disponível e comparável a partir de 1995», o que «reforçou a escolha de 1996 como cenário base». Pois, mas bastaria que tivessem consultado, por exemplo, o livro de Veiga Simão, Sérgio Machado dos Santos e António de Almeida Costa, «Ensino Superior: Uma visão para a próxima década», publicado pela Gradiva em 2002. E não deixa também de ser revelador que a escolha de 1996 «como cenário base» não tenha coibido os autores de sentenciar que «antes da implementação da lei, o acesso ao ensino superior público caracterizava-se por um número de candidatos superior às vagas disponíveis», pelo que, ainda segundo os autores, «as propinas parecem ter sido um importante mecanismo para reduzir este desequilíbrio».