terça-feira, 24 de novembro de 2009

«O que eu penso das praxes», por Pedro Vieira

Continua a nossa rubrica «O que eu penso das praxes», desta vez com Pedro Vieira. Para acederem aos outros textos e participações é só clicarem nos nomes na barra lateral direita.


Pedro Vieira (n. 1975) é designer gráfico. Licenciado em na área de Comunicação e Publicidade trabalha em vários projectos de ilustração e banda desenhada. Faz vários trabalhos para variadas publicações, como o Diário de Notícias, o Público, o i, o Jornal de Letras e a Revista LER. Coloca os seus trabalhos e textos no seu blogue pessoal, Irmão Lucia; participa no blogue colectivo Arrastão; e tem o seu portefólio no Riscar.net.


Irmão Lucia
o veterano grunho, a mim não me convém, não me convém

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Bullying e Praxes por Pedro Foyos

O jornalista Pedro Foyos enviou-nos o seu texto publicado no blogue O Galo de Barcelos ao Poder sobre uma reportagem do Diário de Notícias sobre o bullying e as praxes académicas. É algo extenso, mas bastante interessante.


(...)

SUICÍDIO "POR CAUSA INDETERMINADA"

Comecei a interessar-me especialmente pelo fenómeno negro do "bullying" (tirania juvenil, de forma continuada, em ambiente escolar) há três anos, quando circulou a notícia do suicídio de um jovem estudante português, numa localidade do Norte. As primeiras notícias referiam um «acto de desespero por causa indeterminada", porém um ou outro órgão de informação avançaria mais tarde que não seria alheio à tragédia o clima de violência «no estabelecimento de ensino frequentado pelo estudante.» O que na ocasião deu maior visibilidade ao caso, diminutamente noticiado, viria a ser o insurgimento público de algumas personalidades das ciências da educação contra a forma como em Portugal se ignorava ou subestimava o suicídio juvenil, não raro encoberto sob a falácia da "causa indeterminada". Destacaram-se nesse movimento dois prestigiados pedagogos, Beatriz Pereira, professora e investigadora do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, e Alexandre Ventura, do departamento de Ciências da Educação da Universidade de Aveiro, que alertaram para o facto de o suicídio de jovens no País estar relacionado muitas vezes com o "bullying", embora nunca assumido como tal. Beatriz Pereira, co-autora da obra notável citada na epígrafe e de outras congéneres, já passara pelo trauma de três suicídios nas escolas onde leccionara (dois rapazes e uma rapariga). Sempre "por causa indeterminada".
Aos depoimentos somou-se na internet uma avalancha de testemunhos dramáticos. As vítimas, de costume resignadas a sofrer em silêncio, ganhavam coragem e começavam a desocultar-se. Muita gente – eu próprio – apercebia-se da amplitude inimaginável do problema. Lendo aqueles relatos de sevícias indizíveis, não surpreendia que alguns jovens mais introspectivos e fragilizados tentassem a fuga por meio do suicídio.Foi neste contexto de preocupação social que o Diário de Notícias resolveu dedicar ao tema uma grande reportagem, indigitando para tal missão uma jornalista que havia sido minha estagiária e se revelara uma repórter de excepcional valia. «Missão impossível», suspirava ela, dias depois, perante o silêncio de pedra em que sempre esbarrava nas tentativas de contacto pessoal com adolescentes referenciados como vítimas pelos alunos mais velhos, amigos e solidários mas impotentes para reagir aos maus tratos praticados no interior da escola ou, com frequência, na periferia. Passada uma semana, essa nossa colega deixou-nos perplexos ao dizer que pretendia desistir da reportagem. Maior espanto ao sabermos que o motivo já não resultava da impossibilidade de falar com as vítimas mas precisamente o contrário: conseguira estabelecer secretas conversas com algumas delas, em condições mirabolantes que pareciam copiadas de um filme de espionagem. Tomámos então conhecimento de que a jornalista estivera na véspera com o "Francisco" (nome fictício) que a todo o momento a advertia: «Se eles sabem que estou a contar estas coisas vão matar-me. E também vão matar a senhora.» Repetiu isto sem fim numa conversa de poucos minutos. As "coisas" contadas pelo "Francisco" eram arrepiantes. Entre outras, a de ser colado com fita adesiva resistente («aquela mais forte, castanha») a um poste da baliza do campo de futebol contíguo à escola. "Francisco", uma criança franzina, delicada, era forçado, sob ameaças de morte e exibição de navalhas, a dirigir-se para aquele terreiro. Ali ficava, pernas, braços e tronco atados. «Mas por que te fazem isso?». Francisco: «Dizem que sou maricas. É por isso.» «E batem-te?». «Às vezes. Outras, é só porcarias.»

A nossa colega mergulhara no poço mais escuro da natureza humana, sobremaneira insuportável ao ter de render-se a uma cruel constatação: não eram adultos os protagonistas das cenas atrozes, antes jovens com idades entre os dez e os quinze anos. Debatia-se agora com um terrível dilema: era urgente denunciar, mas a denúncia poderia acarretar mais sofrimento para as vítimas, porventura a morte. E não era só o caso do "Francisco". Em meia dezena de escolas existiam outros "Franciscos" sob outros nomes fictícios: o caso da "Sara" (a "Vaca"), o "Daniel" (o "Orelhas")... De pouco valeria alterar os nomes se fossem identificadas as escolas. Também estas, em consequência, teriam de ser omitidas. A reportagem corria o risco de converter-se numa suspeitosa montagem de ficções e de omissões. Um medo insidioso apossou-se da jornalista ao inferir, dos avisos do "Francisco", que ela própria corria, de facto, um sério risco. Vieram-lhe à memória olhares de desconfiança que vislumbrara nas escolas, antes e depois de contactar pessoalmente elementos dos respectivos conselhos executivos. «Eles vão matar-me. E também vão matar a senhora.»
Por isso se predispunha, a nossa colega, a desistir. Acompanhei o caso de perto.
Um elemento da direcção do jornal (notável jornalista com quem mantive durante largos anos um companheirismo profissional bem vivo na minha memória), soube do que se passava e interveio de uma forma ponderada. Para ele era crucial que a jornalista estivesse certa de que eram verdadeiros os factos a noticiar. Sendo essa a situação, a reportagem seria publicada com alteração dos nomes das vítimas, e das escolas nomear-se-iam apenas as respectivas regiões (arredores de Lisboa, Margem Sul, etc.). Entretanto, na véspera da publicação, o jornal comunicaria por via directa e formalmente a cada um dos conselhos executivos escolares os nomes verdadeiros das vítimas, com vista às emergentes medidas de protecção das mesmas e informação aos pais. Pediu-se à jornalista um esforço adicional: reencontrar alguns dos jovens entrevistados e fotografá-los com máscaras por forma a impedir em absoluto a identificação dos mesmos.
Assim se fez.

A reportagem seria publicada em Outubro de 2006. E os leitores tiveram igualmente conhecimento de que em algumas escolas do País alunos havia que pagavam a gangues juvenis um determinado montante semanal ou mensal (entre dez a trinta euros) para não sofrerem agressões. O jornal citava uma professora do conselho executivo que assumia conhecer esse esquema mafioso, contudo declarava-se impotente para o suprimir porquanto «os locais de cobrança mudam constantemente».
O Ministério da Educação esclarecia, por esse tempo, que o "bullying" em Portugal representava apenas cinco por cento dos problemas do sistema de ensino.

"CATÁLOGO" INFINDO DE HORRORES

Nesse mesmo mês ressurgiu a eterna controvérsia à volta das praxes cruéis. Evocou-se a morte do jovem Diogo Macedo, em Famalicão, durante um ritual praxístico que lhe provocou múltiplas escoriações corporais, além da fractura de uma vértebra cervical (causa da morte, segundo a autópsia). Outro jovem sofrera edema na laringe em resultado de uma prova "popular" denominada "Berraria" (o caloiro é forçado a berrar durante horas, perseguindo um insecto ou um pequeno vertebrado prepositadamente mutilado para lhe dificultar a locomoção).

Subindo de escalão etário, desviemo-nos por momentos do “bullying” infanto-juvenil. As crianças vítimas de “bullying” tornam-se mais tarde, com frequência, agressivas. No limite reencontramo-las como autoras das “chacinas de vingança” como as ocorridas sobretudo em estabelecimentos de ensino norte-americanos. Pedagogos consideram que alguns dos mais inclementes universitários praxantes (os “veteranos”) foram outrora crianças agredidas física e psicologicamente de forma continuada. E os praxados de hoje serão os praxantes de amanhã, tendendo a “refinar” os actos da chamada “tradição académica”.

Encontram-se documentadas em vídeo ou por meio de registos fotográficos algumas praxes insuportavelmente bárbaras. Menciono quatro:

"Shot". O praxado mastiga uma malagueta, após o que ingere um "shot" de vinagre e azeite.
Simulação de actos sexuais. A rapariga caloira simula fazer sexo oral com os "veteranos" ou praticando outros actos com um poste. O rito completo passa por simulação de orgasmos.
"Barrelada". Corte de pêlos púbicos (há dois anos, um jovem sofreu ferimentos graves no escroto).
"Elefante Pensador". O praxado, de joelhos, deve mergulhar a cabeça num balde cheio de excrementos de porco ou de vaca (esta praxe confinava-se à Escola Agrária de Santarém, crê-se ter cessado).

De realçar que um ex-director do referido estabelecimento defendeu esta praxe, declarando que o contacto com a bosta é "natural".
Admite-se que mais de 50 por cento dos rituais praxísticos que continuam a praticar-se em Portugal são «ofensivos, intimadores e violadores da dignidade da pessoa humana». O "catálogo" de praxes é infindo. Numa extensa reportagem dedicada ao tema, a jornalista Fernanda Câncio fez uma síntese lapidar: «Há praxes para tudo, ou de tudo nas praxes» .

O "CORREDOR DA MORTE"

Retornando à reportagem do Diário de Notícias. O mais jovem testemunho chegado ao jornal era o de um menino de oito anos que usava a expressão "corredor da morte" para designar uma espécie de praxe na sua escola cuja singularidade era prolongar-se por todo o ano lectivo. Com fantasioso exagero e a propensão tão habitual nas crianças para captar palavras e ditos do quotidiano audiovisual, o "corredor da morte" era de facto um corredor formado por duas fileiras de alunos do 2º ciclo que batiam (pontapés, "carolos") nos novatos do 1º ano obrigados a fazer aquele percurso. Quem chorasse teria de passar segunda vez. E todos recebiam ameaças de morte se denunciassem aos pais ou professores as agressões. «Por que fazem isso aos vossos colegas mais novos?» – perguntou a jornalista. Resposta:. «Fizeram-me o mesmo quando vim para a escola.» Resposta idêntica darão os universitários "veteranos" promotores das praxes.

Ainda antes de publicada a reportagem, soubemos que o "Francisco" se encheu de coragem e contou à mãe o que se passava com ele na escola. O pai assumiu pessoalmente a protecção do filho, recorrendo à colaboração de um polícia amigo.
Pelo menos dois jovens citados naquela investigação jornalística ("Daniel" era um deles) foram transferidos para outras escolas.
E poucos meses depois, em Fevereiro de 2007, comecei a delinear um novo livro ao qual daria o título de Botânica das Lágrimas.

Opinião de José Couto Nogueira sobre a praxe

José Couto Nogueira (n. 1945) foi fotógrafo de publicidade de imprensa, foi jornalista nas revistas brasileiras Interview, a Playboy e Vogue. Foi correspondente do jornal O Estado de São Paulo em Nova Iorque. Mais recentemente, em Portugal, trabalhou nas publicações Exame, DEmais , Ícon, Expresso, GQ e O Independente. Ler mais aqui.


A praxe é fixe?
i - por José Couto Nogueira, 21 de Novembro de 2009.

Pergunta
Caro José Couto Nogueira,
Escrevo-lhe simplesmente para auscultar a sua opinião sobre as praxes académicas. O meu filho, rapazola de quase 20 anos, frequenta o ensino superior. Em tertúlias, quando estendemos pontes geracionais, divergimos no na opinião sobre as praxes académicas. Para mim, são rituais exímios em declarações de desamor por uma caloirada imberbe, bobos de uma corte fútil, carente de bom senso. Ele contrapõe, aliando o conceito de tradição e pândega. A sujeição ao ridículo é justificada pela integração no clã? Eu não creio.
Atentamente,

Júlia Barros



Cara Júlia,
Em 1727, D. João V proibiu a praxe devido à morte de um aluno. Portanto já nessa época o tratamento alarve dos caloiros existia, era brutal e provocava reacção das autoridades. Durante séculos a praxe foi um exclusivo da Universidade de Coimbra, que também era a nossa única universidade, mas não alastrou ao Porto e a Lisboa quando estas cidades passaram a ter ensino superior. Houve períodos mais intensos mas nunca deixou de assustar, arreliar e humilhar os caloiros. A partir de 1834 torna-se mais violenta e as denúncias de excessos são constantes. Proibida em 1911 com a implantação da República, e suspensa em 1961 com o Luto Académico contra a repressão do Estado Novo, é praticamente abandonada no pós-25 de Abril. Quanto volta, no final da década de 1970, já é alargada a praticamente todas as universidades (assim como o traje académico de capa e batina, que sempre fora exclusivo de Coimbra) e depois chega ao ensino secundário. Devido aos inúmeros casos de violência, muitos causa de estragos físicos e psicológicos graves, é terminantemente proibida pelo ministro Mariano Gago em 2008 e 2009 ? prova de que continua a existir. Ainda recentemente houve um escândalo no Colégio Militar que, não se referindo à praxe da entrada na faculdade propriamente dita, tem a ver com as prepotências a que os alunos mais velhos se julgam no direito de exercer sobre os mais novos.

Pois é, a praxe sempre existiu, e vai continuar a existir. Tem a ver com os rituais de iniciação que persistem em muitas actividades e ambientes fechados. Há praxes nas forças armadas e até nos cursos de pilotagem ? quando o aluno "é largado", isto é, voa sozinho pela primeira vez, ao aterrar leva um valente banho de mangueira. Também tem a ver com a truculência própria da adolescência, a tal "integração no clã", e, presentemente, com um certo vazio de ideais que leva à procura de substitutos bastante estúpidos.

Os defensores falam em tradição, mas, como já aqui se observou a propósito de outras questões, a tradição é um argumento vazio. Há boas tradições, que é bom que se preservem, e há más tradições, que quanto mais cedo desaparecerem melhor. Por outro lado, uma praxe não tem necessariamente de ser violenta ou perigosa - mas é sempre desagradável e humilhante, e certas pessoas têm um menor grau de tolerância a serem sujeitas à vontade dos que podem só porque podem.

De um ponto de vista ético, é claro que não tem ponta por onde se lhe pegue. Não há qualquer mérito, vantagem ou valor em torturar e achincalhar os mais novos, mais fracos ou recém-chegados a um novo ciclo de estudos. Continua, por uma das razões que perpetuam a violência infantil: quem foi sujeito a ela sente prazer em desforrar-se quando chega a sua altura de estar na mó de cima.

Agora tente convencer o seu filho... Sujeite-o a uma praxe doméstica desagradável, a ver se ele percebe.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Image Hosted by ImageShack.us

O M.A.T.A. foi convidado para ter uma banca de materiais nesta festa de lançamento de uma petição à Assembleia da República. Esta petição visa combater as injustiças do pagamento de contribuições à Segurança Social por parte dos trabalhadores a recibos-verdes. A organização deste evento está a cargo do APRE!, FERVE - Fartos d'Estes Recibos Verdes, Plataforma dos Intermitentes do Espectáculo e do Audiovisual e Precários Inflexíveis.

A festa, com o mote Recibos Verdes: Antes da dívida temos direitos, irá realizar-se no espaço Interpress, no Bairro Alto (ver mapa), no dia 20 de Novembro (sexta-feira) a partir das 21:30h. A entrada são 2€.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Ainda sobre a decisão do Tribunal no caso da morte de Diogo Macedo

Por forma a esclarecer alguma confusão que surgiu na discussão iniciada aqui e aqui, postamos alguns excertos do acórdão produzido pelo Tribunal Cível de Vila Nova de Famalicão relativamente ao caso que opunha Maria Macedo, mãe de Diogo Macedo, e a Fundação Minerva, detentora da Universidade Lusíada.
«
2. Fundamentação
2.1. Com relevância para a decisão de mérito, estão assentes os seguintes factos:
(...)
28. (DD) A autópsia revelou que a morte do Diogo foi devida a lesões traumáticas crânio-encefálicas e cervicais.
29. (EE) A autópsia revelou tumefacção da região cervical direita, edema na região cervical posterior, ainda múltiplas equimoses na região lombar, hematoma na região inguinal direita, equimose da região nadegueira e do testículo direito, hematoma extenso no cerebelo direito com múltiplos coágulos, fractura da 1ª vértebra cervical, arco posterior.
30. Segundo a Dra. M. A. A. D. (...) "Não sendo possível de terminar qual a natureza dos impactos que o corpo sofreu, não restam mais hipóteses senão considerar a possibilidade de agressões de terceiros ou de várias quedas; uma só queda nunca, dada a multiplicidade das lesões e a sua dispersão pela geografia do corpo".
(...)
32. (HH) Quando inquirido no âmbito do inquérito crime, o N. F. R. S., "Tirs", afirmou: "Relativamente a eventuais quedas do Diogo, diz não serem impossíveis mas não é fácil o pandeireta, não obstante os exercícios coreográficos desenvolvidos, magoar-se com violência. Nas mãos é possível, mas pouco mais".
(...)
51. O filho da Autora sofreu as agressões (por acto de terceiros) pelo menos na zona lombar (de onde resultaram as múltiplas equimoses nessa zona encontradas e referidas em 29., supra e na nuca/pescoço, que aconteceram quando este se encontrava na companhia dos colegas da Tuna, ou seja entre as 21 horas e 45 minutos e as 22 horas e 30 minutos.
52. A morte de Diogo foi consequência adequada, directa e necessária de actos violentos a que na noite do dia 8 de Outubro, nas instalações referidas em 51. supra, foi sujeito, nomeadamente de uma pancada, por pessoa não identificada, que lhe causou traumatismo crânio encefálico e cervical.
(...)
54. Os pais do falecido Diogo (...) foram confrontados com o facto deste ser desumanamente tratado e de estar a ser submetido a práticas violentas, algumas das quais (nomeadamente as que sofreu na zona da nuca/cervical - na zona traumatizada) acabaram por causar a sua morte. Em nome da "praxe" foi o mesmo sujeito a práticas violentas, estas permitidas por falta de controlo pela Universidade (...)
(...)
56. Depois de estarem disponíveis os resultados da autópsia que evidenciavam uma enorme probabilidade de morte com intervenção alheia, não existiu qualquer reacção, não foram tomadas quaisquer providências para investigar o caso e apurar o que efectivamente aconteceu, por parte da Ré.
57. Se a Ré controlasse as práticas praxistas dentro das suas instalações, impedisse que a agressividade física e psicológica dominasse, o Diogo não teria sido sujeito a humilhação, a vergonha, nas mesmas e teria contribuído para que a sua morte não tivesse ocorrido.
(...)

2.2. Aspecto Jurídico da Causa
(...)
2.2.1. Facto
(...)
No caso, (...), ficou apurado que a Ré omitiu qualquer controle das actividades, alegadamente "praxistas", daquela Tuna e/ou dos seus membros, em nome das quais ocorreu a morte do Diogo, conforme ficou expresso em 2.1.54 e 2.1.57..
(...)
Certamente não o farão admitindo que alguns elementos do seu universo, nomeadamente estudantes que se julgam superiores aos seus iguais, se aproveitem, alegadamente, de determinadas tradições académicas para exercitar, nas próprias instalações da academia, personalidades mal formadas com práticas do género das apuradas.
Inexistem, assim, dúvidas de que a Ré, através dos seus órgãos competentes à data da ocorrência, deveria ter agido no sentido de proibir este tipo de comportamentos de pseudo "praxe", mais próprios de instrução militar, atendendo não só às normas jurídicas que acima se citam mas também pondo em prática o seu papel, o seu dever social de contribuir para uma sociedade mais próxima daqueles valores. É caricata a desvalorização que a Ré faz, na sua contra-argumentação, de comportamentos que violam a integridade moral e física dos seus alunos e que qualquer homem médio percebe que só são admissíveis num propício ambiente de noviços que, no caso da vítima, se estendeu ao seu 4º ano de forma absurda.
Não o fazendo, a Ré contribui, como se apurou, para o resultado ocorrido, e não deixa de ser responsável, além dos demais agentes envolvidos nesses actos, nos termos do art. 490º, do Código Civil.
(...)
Além desses factos ou causa de pedir, a Autora parece querer acrescentar a circunstância de a Ré ter actuado com alegada passividade face aos acontecimentos, no sentido de investigar e identificar os autores materiais dos acontecimentos. E de facto o desenrolar dos acontecimentos apurados denota que a Ré fez por ignorar, pelo menos depois do momento mencionado em 2.1.56., as circunstâncias anómalas da morte do Diogo.
(...)
»

Actualizado em 14.Dez.09
Do Acórdão:
«2.2.5.Nexo de causalidade
Resta-nos perscrutar na matéria provada o nexo de causalidade entre estes danos e o facto lesante articulado pelos demandantes.
Este elemento é essencial para a selecção dos danos que merecerão o ressarcimento por via indemnizatória.
Do art. 563º, do Cód. Civil, resulta que a obrigação de indeminização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Os trabalhos preparatórios do Cód. Civil, na parte referente a este preceito, revelam de modo inequívoco que com ele se quis consagrar a teoria da causalidade adequada. A indemnização só cobrirá aqueles dano cuja verificação era ilícito nessa altura (do evento danoso) prever que não ocorressem se não fosse o evento lesivo.
Como salienta o Ac. do Supremo Tribunal de justiça acima citado, de acordo com a doutrina mais ampla da teoria da causalidade afequada, deve entender-se que quando exista uma relação de causa/efeito entre o facto e o dano, este só deixará de ser entendido causa adequada daquele, se se mostrar de todo alheio à verificação dele, tendo-o provocado apenas por circunstâncias absolutamente anormais, extraordinárias ou anómalas.
Recorrendo ao prognóstico objectivo e histórico preconizado pelo normativo em aplicação, temos de concluir que a omissão ilícita e culposa da Ré, supra enunciada, que permitiu as mencionadas ofensas corporais e a consequente morte do Diogo Macedo foi, como já adiantámos,condição suficiente e adequada aos resultados danosos apurados, nomeadamente os danos morais mencionados. Qualquer "homem médio", para usar as palavras da Ré, teria outro controlo sobre actividades do género nas suas instalações e esse, por mínimo que fosse, evitaria o que sucedeu, v.g., dando ordens expressas aos funcionários que guardavam as suas instalações para controlarem tal tipo de atitudes.»

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

«O que eu penso das praxes», por António Louçã

Continuamos a publicar a série de textos com o tema «O que eu penso das praxes». Várias personalidades já responderam. Para verem mais textos, consultem a lista de nomes na coluna lateral do blog.

António Louçã (n. 1955) é historiador e jornalista. Licenciou-se em História na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1979, e fez o Mestrado em História Contemporânea de Portugal em 2000, com uma tese sobre Portugal e o ouro nazi. É colaborador e redactor de diversas publicações periódicas desde 1974. Foi correspondente do Diário Popular em Madrid em 1979, director da revista Versus entre 1983 e 1987, chefe de redacção da Semana Informática em Lisboa e correspondente em Berlim entre 1989 e 1994, editor da revista História em 2000. É jornalista da RTP desde 2001. Venceu, com Sofia Leite, o Grande Prémio Gazeta 2008 de Jornalismo. Tem vários livros publicados. Ver mais aqui.



GREGARISMO PRAXISTA OU ACÇÃO COLECTIVA E SOLIDÁRIA?

Pedem-me umas linhas sobre a praxe e custa-me a escrevê-las. Não devia custar, porque andei na Universidade nos anos 70 do século passado. Como tradição, a praxe seria, supostamente, mais viva nessa época distante e ter-se-ia, supostamente, diluído nos nossos tempos de globalização e de internet.

Mas a suposição é falsa. Naquele tempo de universidade que era o meu, nunca vi praxe alguma nem nada que cheirasse, remotamente, sequer à praxe actual. Aquele tempo tinha, por certo, as suas tradições: as do movimento estudantil, contra a reforma de Veiga Simão, contra os gorilas nas faculdades, contra a ditadura fascista, contra a guerra colonial, contra o genocídio imperialista no Vietname.

Quem hoje vê estudantes trajando de negro como bandos de corvos não consegue reprimir a ideia de que a tradição já não é o que era. Esta “tradição” é coisa muito recente. Ela foi tão fabricada pelas conveniências da política dominante nos nossos dias como a “tradicional” indumentária vermelha do Pai Natal foi fabricada pela Coca-Cola.

A praxe é bem a antítese artificial de tradições solidárias e combativas, internacionalistas e libertárias, que identificaram a juventude do século XX, em vagas sucessivas até ao ponto culminante de Maio de 68. Onde ali prevalecia a acção de massas por um mundo novo, aqui sobressai a mesquinhez dos tiranetes de trazer por casa, o abuso de poder por parte das almas de lacaios, o desforrar-se para baixo por parte de quem habitualmente se desbarreta para cima.

E, no entanto ...

No entanto, esta mentira, para ser mentira, tem de trazer à mistura qualquer coisa de verdade. A praxe combina o individualismo tacanho e egoísta com um gregarismo atávico e primitivo, tirbutário da psicologia do rebanho – como as claques futebolísticas, como os fanatismos religiosos. E, no entanto, foi no meio das claques futebolísticas que a resistência ucraniana pôde jogar em casa contra os ocupantes nazis, foi no meio delas que despontaram algumas das primeiras grandes manifestações contra a ditadura argentina de 1976-1982. Os e as estudantes com sentido crítico, que hoje são uma pequena vanguarda na resistência aos tiques autoritários das praxes, não têm de desanimar por se sentirem, temporariamente, em minoria. À mínima viragem no ambiente, a acção colectiva pelas aspirações sociais da grande massa virá, como a velha toupeira que fez o seu caminho, irromper sob a carcaça do gregarismo praxista.

sábado, 14 de novembro de 2009

Opinião de Tiago Gillot sobre as praxes

Tiago Gillot foi membro do M.A.T.A. durante vários anos. Deixamos aqui um texto dele publicado no Esquerda.Net.


As violências da praxe
02-Nov-2009

Uma notícia relativamente discreta durante a semana passada, revelou-nos que o ministro reencaminhado na pasta do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia, Mariano Gago, recebeu, desde o início do presente ano lectivo, cinco queixas graves de violência ocorrida durante as praxes académicas. Quatro delas foram enviadas para a Procuradoria-Geral da República e devemos esperar seguimento. Convém dizer que os auto-intitulados "veteranos", como vem sendo hábito, já reagiram para nos convencer de que estão sempre dispostos a definir novos "limites" às suas arbitrariedades.

A notícia não surpreende por revelar qualquer novidade sobre a natureza violenta das praxes. A violência é o seu ingrediente principal, a sua legitimação e até, dum certo ponto de vista, a sua auto-justificação: a praxe existe, nas palavras - mais ou menos sofisticadas e conscientes, conforme os casos - dos seus defensores, porque é preciso uma ordem que organize o espaço escolar, que imponha regras aos que chegam de novo, que responda à novidade com o conservadorismo. Por isso é violenta, será sempre violenta. É, tem sido, uma espécie de excepção aparente na nossa vida colectiva. Nas praxes, mais do que não haver democracia, o autoritarismo e a segregação são a sua forma de afirmação. É assim que demasiadas vezes a violência da ideologia da praxe se torna física e, quando conhecida, volta a espantar o país.

Mas a surpresa foi-se esbatendo pela coragem de vários estudantes que, nos últimos anos, enfrentaram o poder das praxes, lutaram contra todos os compadrios e intimidações, conseguindo mesmo vitórias difíceis nos tribunais, que responsabilizaram finalmente agressores e as instituições de ensino superior que lhes deram toda a cobertura. A recente condenação da Universidade Lusíada pela morte de Diogo Macedo (pelos seus "colegas" da tuna, em instalações cedidas pela própria Universidade) é o último exemplo - embora ainda sem consequências criminais para os presumíveis agressores.

A novidade poderá ser, então, que temos, finalmente, um ministro da tutela que não quer compactuar com as violências das praxes. Será? Aparentemente é verdade. De facto, é importante que Mariano Gago faça o que é normal, assumindo as suas responsabilidades e afastando o manto de impunidade que protege as instituições de ensino superior e respectivos Reitores, cúmplices de actos frequentemente medievais e quase sempre mais preocupados com a "imagem" do seu reinado e em garantir as graças dos "seus" estudantes.

Gago responde a um contexto novo e a uma nova atenção perante o escândalo, mas também por um passado em que sempre se afirmou contra as praxes. Hoje, enquanto ministro, escolhe palavras duras, considerando-as "fascistas" e avisando a navegação, com ar decidido, que, com ele, o regabofe vai parar aos tribunais.

Mas Mariano Gago precisa, também ele, dum julgamento mais cuidado. As praxes são uma ovação dum ensino superior excludente e elitista, uma claque que grita pelo reconhecimento tribal e situacionista numa Universidade à venda para consumidores desesperados, à mercê das angústias do sub-financiamento e sob a cobiça do mercado que exige portas escancaradas para a invadir. Nesta fábrica de futuros precários que Gago confirmou e acentuou, a passagem é mais breve e o horizonte mais curto: por essas e por outras, a praxe muda - adapta-se, apesar de afirmar a "tradição" - mas persiste na sua função essencial de contenção e esvaziamento, ocupando o espaço deixado vazio por outras experiências que ficam por acontecer.

É por isso que este ministro não nos pode oferecer - como nenhum outro - um combate definitivo às praxes, às suas raízes, significados e consequências. Porque Gago continua a querer estudantes dóceis, que aceitem a sua Universidade de penúrias luxuosas, com propinas e empréstimos, a caminho ou já pomposas fundações, excluindo os estudantes das decisões que importam à comunidade escolar.

É de facto urgente uma luta forte contra a maior de todas as violências da praxe. O combate ao conformismo é o desafio permanente do movimento estudantil e foi sempre nele que se colocaram todas as questões decisivas e todos os avanços importantes. A oposição às praxes sempre fez e fará parte duma disputa grande pela Universidade, onde não se esperam que sejam decretos a substituir uma luta aberta e decidida, capaz de convocar o conjunto dos estudantes e da sociedade, em que todos têm lugar, independentemente do número de matrículas ou de outra coisa qualquer.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Ovos "bons" ou ovos podres, eis a questão!

Há coisas estranhas. Uma leitora do jornal regional O Mirante interroga-se se os "veteranos" do Instituto Politécnico de Tomar usam ovos "bons" ou ovos podres. É que segundo leitora Ana Silva os ovos podres foram proibidos desde 2005, a partir daí só ovos dentro do prazo de validade, com alguma qualidade.

Ora, eu acho que a questão é: mas faz sentido "convidar" (com aspas, como escreveu a leitora) pessoas a partirem ovos, em bom estado ou podres, na cabeça?

Marcha pelo Ensino Superior a 17 de Novembro


A Marcha pelo Ensino Superior realiza-se no dia 17 de Novembro (próxima terça-feira), terá inicio na Cidade Universitária (em Lisboa) e terminará no Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

A Marcha pelo Ensino Superior surge pela urgente necessidade de mais financiamento do Estado para o Ensino Superior e pelo reforço do investimento do Governo na Acção Social Escolar.

Cada dia que passa aumentam as dificuldades e problemas dos estudantes em todas as faculdades/escolas do país. Desde Bolonha ao RJiES, a passar pelas propinas ou Acção Social (escassez de bolsas) e os cortes orçamentais ao Ensino Superior realizados pelos sucessivos Governos, os estudantes estão cada vez mais descontentes com o rumo que o Ensino Superior está a tomar.

Em Portugal, a Acção Social é cada vez mais tema de notícias. Face à crise económica e social sentida em todo o país (com o crescente desemprego nas famílias portuguesas), cada vez mais estudantes têm de recorrer a este apoio para poder continuar os seus estudos. É urgente um intervenção activa por parte do Governo. Mas esta acção do Governo não pode ser a sua desresponsabilização, como acontece actualmente com o incentivo aos empréstimos bancários e a "empregos" precários dentro das Instituições de Ensino Superior. Estas medidas não são a solução!

Por isso, dia 17 de Novembro (na próxima 3ª-feira) junta-te à Marcha pelo Ensino Superior...

- por uma intervenção de urgência por parte do Estado/Governo, que restabeleça o normal funcionamento das instituições de Ensino Superior público, assegurando o respeito pelos mais elementares compromissos financeiros de cada instituição, começando por salários e fornecimentos essenciais;

- pela adopção de uma política de mais e melhor Acção Social escolar;

- por um sistema de financiamento plurianual, idêntico ao que o ministro Mariano Gago reserva às Fundações, capaz de garantir um planeamento adequado por parte das instituições de Ensino Superior;

- pelo restabelecimento da autonomia das instituições, constitucionalmente consagrada, que se encontra ameaçada pelos estrangulamentos financeiros e pelos impactos decorrentes da implementação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJiES);

- pela promoção de um Ensino Superior público, universal, de qualidade e tendencialmente gratuito.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Mais uma direcção proibe as praxes dentro do perímetro do seu estabelecimento... (comercial?)

À semelhança de outras direcções de outros institutos de ensino superior do país (ver aqui), o presidente do IPV resolveu seguir o caminho mais directo para acabar com as praxes - proibi-las. Outras direcções tiveram outras atitudes, mais ou menos tímidas - aqui e aqui.
No ano passado algo semelhante já tinha acontecido - no IS Técnico, por exemplo.


Instituto Politécnico de Viseu proíbe as praxes académicas
Decisão motivada pelas recomendações do ministro da Ciência e Tecnologia
IOL Diário, 11.Nov.09

O presidente do Instituto Politécnico de Viseu (IPV), Fernando Sebastião, proibiu as praxes académicas nos edifícios e espaços envolventes das escolas da instituição para não «dar facilidades» aos alunos para cumprirem esta tradição, refere a Lusa.
A decisão, que consta num despacho de 30 de Outubro, prendeu-se «com as recomendações do ministro [da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior) e com o impacto negativo para a imagem do instituto» que tiveram notícias recentes sobre a existência de alegados «negócios lucrativos» de membros do Conselho de Viriato com os bares para onde levam os caloiros, justificou à Agência Lusa Fernando Sebastião.
«O ministro recomendou que não fossem dadas facilidades relativamente às actividades de praxe e avisou que, se houver denúncia de humilhação dos alunos, comunicará ao Ministério Público. Ora, se permitirmos as actividades, estamos a facilitá-las», considerou, aludindo à mensagem enviada por Mariano Gago aos responsáveis máximos das universidades públicas e privadas e dos politécnicos.
Fernando Sebastião admitiu que, na sua decisão, pesou a denúncia anónima que apontou o dedo a elementos do Conselho de Viriato (nomeadamente à sua presidente), que estariam a lucrar à conta dos caloiros e que levou mesmo a Associação Académica a suspender a praxe.
«A única medida que eu podia tomar era não autorizar as actividades de praxe», frisou.
No que respeita a este assunto, contou que o ministro lhe enviou «cópias de recortes das notícias de jornais» e «mostrou preocupação pela situação». «Acho que depois de tudo isto os dirigentes associativos estão preocupados com a situação e não querem abusos, nem que a academia esteja na praça pública por maus motivos», considerou, contando que houve quem não tivesse gostado da sua decisão e quem achasse que «já devia ter sido tomada há mais tempo».
O presidente da Associação Académica do Instituto Politécnico de Viseu, Rafael Guimarães, escusou-se a dizer se concorda ou não com o despacho de Fernando Sebastião.
«Já havia algumas escolas que proibiam a prática de praxe, nomeadamente a Superior de Tecnologia e a de Tecnologia e Gestão de Lamego. Foi uma questão de estender isso às restantes escolas do Politécnico», disse apenas, disposto a dar o assunto das praxes por encerrado.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Caloiro e o Monstro

Encontrei este texto do Renato Teixeira sobre a praxe, no blogue 5Dias. Vale a pena ler.

Estátua do Rei D.Dinis na alta Universitária de Coimbra

Há três argumentos que quem defende a Praxe recorre. São eles: a tradição, a integração e a igualdade, e não se lhes conhece mais nenhum. A distância entre a letra e a prática destas três ideias é gritante, senão vejamos.

O paradigma tradicionalista, que se defende com a História começa por esquecer que é tão tradicional a defesa da praxe como o seu combate. A praxe é tradicionalista no pior dos sentidos. A cada tempo dos vários tempos dos últimos 150 anos, a praxe esteve sempre contra as mudanças estruturais dos sistemas políticos e sociais. Com a Monarquia contra a República, contra a Revolução e pelo Estado Novo. Nas duas principais revoluções do último século da nossa História a praxe foi suspensa, não só como forma de luta, mas acima de tudo por ela ser absolutamente contraditória com os ideais progressivos que floram nesses períodos. Outro lado pernicioso quanto ao carácter das tradições académicas é o facto de elas perpetuarem e ampliarem sempre as características mais conservadoras da sociedade. Se a sociedade é machista, homofóbica, classista, punitiva, e hierárquica, sob a batuta da estranha selecção do darwinismo social, a praxe ainda amplifica cada um destes defeitos. As mulheres não podem ser duxas nem cantar o fado, o conselho é de veteranos, os gays são figuras de gozo e de chacota (como de resto as derivas à “normalidade”), o caloiro é bicho e animal, “figura infra-humana para o gáudio dos doutores” com mais umas quantas matriculas e o código da praxe viola, sem sufrágio, direitos, liberdades e garantias consagradas na lei de todos.

O paradigma da integração justifica que se cite um livro curioso. Intitula-se “Coimbra Boémia”, livro este que como tantos outros livro de memorias da cidade velha, podemos constatar a violência dos relatos de antigamente, sem cosméticas nem falsas retóricas. Diz o livro: “o caloiro é para saciar os desejos dos doutores, é para entreter”. Integrar, é uma palavra que vem na praxe sempre com um duplo sentido, e são os relatos que o confirmam. No Coimbra boémia, dos anos 40, percebe-se bem o terror das repúblicas praxistas, as perseguições, as milícias, a arrogância ante os trabalhadores (futricas) bem como a simpatia do fascismo pelas trupes e vice-versa. O argumento da integração, usado muitas vezes pelos românticos da praxe, não é mais do que isso mesmo, uma visão romântica, sem nenhum facto da realidade que o suporte. Mandar, rapar, bater, humilhar, perseguir a diferença, nada tem de romântico e muito menos inclui. Permite isso sim, que a violência fique disponível nas mãos de tantos que para ai andam tão pouco sensatos, e que usam da praxe como uma auto-estrada rumo à cura das mais recônditas frustrações. Bateram-me…, pois baterei; raparam-me…, pois raparei, e assim sucessivamente, olho por olho dente por dente, até à derrota final, no ano da cartola e do juízo.

Por último o paradigma da igualdade. Com o traje todos somos iguais. Pobres e ricos serão iguais aos olhos da Academia. A última e a mais hipócrita das mentiras. Os trajes, sejam eles quais forem, foram feitos para diferenciar umas pessoas das outras, não para as unificar. Como se o poder económico não estivesse antes na carteira e nas suas potencialidades. Entre os estudantes, por mais que todos andassem trajados, distinguir-se-ia o carro, a casa, o trabalho que teriam que ter (ou não), os litros de álcool no sangue por semana (e o tipo de álcool que lá circula), os outros consumos e vícios que poderiam ter ou não, as férias em família, na Indochina ou o trabalho precário na costa balnear mais próxima. Quanto à principal diferenciação que o traje impõe, é entre a cidade e os estudantes. Entre quem estuda e faz o pão, os cafés, as refeições, a limpeza da casa, das ruas ou da própria escola, constrói os estádios, as universidades e os hospitais, em quem no fundo garante a vida, e os estudantes, que regra geral, sem reconhecimento e com vaidade exacerbada, em nada retribuem.

A praxe é feia e a praxe é tola e só agrada verdadeiramente, aqueles que querem treinar para senhores, que querem praticar a opressão e a falta de humanidade. São os senhores dos senhores do amanhã de amanhã. E devem por isso também ser combatidos desde tenra idade.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Equidade no ensino superior


O seguinte artigo vem directamente do Monde Diplomatique, edição portuguesa, número deste mês. Faz um interessante resumo da evolução das políticas de Ensino Superior, abordando temas como as propinas, o novo RJIES e Bolonha.

Equidade no ensino superior

por Sandra Monteiro

Nos últimos vinte anos, o ensino superior em Portugal passou por profundas transformações, do modelo de financiamento ao novo regime jurídico das instituições do ensino superior [1] , passando pela reforma de Bolonha e pelas alterações do estatuto da carreira docente. O início da nova legislatura, até porque combina uma solução de continuidade na pasta do Ensino Superior com uma previsível revitalização do debate político e parlamentar, é um bom momento para a sociedade reflectir criticamente sobre todas estas alterações, para fazer um balanço que tenha em conta os dados empíricos entretanto disponíveis e para ajustar os caminhos futuros de um ensino superior democrático e de qualidade.

Poderá começar-se pelo modelo de financiamento. Há quase duas décadas opuseram-se duas concepções. A primeira correspondia à defesa do contrato social até então em vigor e apoiava-se no texto constitucional, que prevê que o Estado deve assegurar o carácter universal e tendencialmente gratuito do ensino. Afirmava que o ensino superior deve constituir um serviço público cujo funcionamento corrente deve ser financiado pelo orçamento de Estado, de modo a que uma fiscalidade progressiva actue como mecanismo de redistribuição do rendimento e de promoção da justiça social, propiciando a todos, independentemente da origem socioeconómica da família em que se nasceu, condições de maior equidade no acesso ao saber e ao desenvolvimento das competências susceptíveis de propiciar uma sociedade menos desigual. Um regime de bolsas e de apoio social deveria ajudar a superar as situações de exclusão prevalecentes.

A segunda concepção defendia o fim da «gratuitidade» do ensino superior – que supostamente desresponsabilizava o aluno e desvalorizava o grau –, o que devia ser feito através da introdução de propinas, mais ou menos aproximadas do custo real do ensino, segundo as versões, como forma de assegurar o aumento da qualidade das formações e dos diplomas. Esta perspectiva sustentava ainda que o novo modelo de financiamento, através de diferentes escalões de pagamentos e isenções, faria com que os estudantes de maiores rendimentos pagassem propinas mais elevadas, para financiar o ensino dos estudantes mais pobres. A Lei 20/92, de 14 de Agosto, promulgada durante o governo de Aníbal Cavaco Silva no quadro de uma intensa contestação estudantil, fez até questão de sublinhar a ideia de que as propinas não serviriam para desresponsabilizar o Estado e pagar as despesas correntes (salários, etc.), definindo-as como receitas «a afectar, prioritariamente, à prossecução de uma política de acção social e às acções que visem promover o sucesso educativo». Prioritariamente… A cada instituição incumbia a fixação anual do montante das propinas, com base num valor máximo definido pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP), e pelo órgão equivalente no ensino politécnico.

Do preço simbólico de 1200 escudos (cerca de 6 euros) antes da nova lei, as propinas passaram a ter um valor médio de 300 euros em 1995 e de 900 euros em 2005. Hoje, quase todos os estabelecimentos públicos, confrontados com um crónico subfinanciamento estatal que põe em causa o normal funcionamento das instituições, aplicam a propina máxima (972,14 euros), uma das mais altas da União Europeia (só dois países praticam valores mais elevados e sete não cobram qualquer montante) [2]. O modelo de financiamento com propinas, além de não ter contribuído para melhorar a qualidade do ensino, promoveu o recurso ao crédito bancário por parte de muitos estudantes que, não podendo agora cumprir com os pagamentos, são forçados a desistir do ensino superior [3].

Poder-se-ia pensar que esta é uma situação nova, mas um estudo de Belmiro Cabrito, professor no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, intitulado «Equidade no Ensino Superior – 1995-2005: Uma Década Perdida?» [4] , veio recentemente demonstrar que, já antes da crise, «o elitismo da universidade portuguesa agravou-se», afastando numa década um terço dos alunos mais pobres (a percentagem passou de 12,5 para 8,5 por cento). O estudo verificou também que «o aumento do número de bolseiros (no privado, sobretudo) não teve efeitos positivos na equidade do ensino universitário», que permanece bastante baixa.

Poderá este ser o caminho de uma modernização assente na formação de competências e na justiça social? Se a prioridade «é desenvolver as políticas sociais, é qualificar os serviços públicos, é reduzir as desigualdades na sociedade portuguesa» [5], então não podemos perder mais décadas.

sexta-feira 6 de Novembro de 2009

Notas

[1] Maria Eduarda Gonçalves, «Que universidade queremos?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Abril de 2008.

[2] Relatório «Education at a Glance» da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), citado em «Propinas são das mais altas da Europa», Diário de Notícias, 9 de Setembro de 2009.

[3] «Crise provoca aumento de desistências no Superior», Diário de Notícias, 13 de Abril de 2009.

[4] Cf. www.fes2009.ul.pt/docs/presentations/belmirocabrito.pdf, notícia sobre o FES2009 em «Propinas afastam um terço dos alunos mais pobres», Diário Económico, 20 de Outubro de 2009.

[5] José Sócrates, «Discurso de tomada de posse do XVIII Governo», 26 de Outubro de 2009.

domingo, 8 de novembro de 2009

Propagandas silenciosas

Um livro que comecei recentemente a ler, Propagandas silenciosas - Massas, televisão, cinema (Ignacio Ramonet), há um passagem que se enquadra na minha opinião sobre a tradição académica.
Tendo a praxe a pretensão de ser o modo como os estudantes de ensino superior se relacionam entre si (hierarquiza-os), como eles devem produzir cultura (tunas e semelhantes), e como pretende uniformizá-los (dando-lhes um uniforme/traje), e portanto atribuindo-lhe uma dimensão massificadora, parece-me comparável à indústria cultural de que fala Ramonet neste livro, embora com uma propaganda nada silenciosa.

«A desconfiança a respeito da indústria cultural e da sua propaganda silenciosa repousa fundamentalmente em três receios:
1. que ela reduza os seres humanos ao estado de massas e entrave a estruturação de indivíduos emancipados, capazes de discernir e de decidir livremente;
2. que ela substitua, no espírito dos cidadãos, a legítima aspiração à autonomia e à tomada de consciência por um conformismo e uma passividade perigosamente regressivas;
3. que ela propague, por fim, a ideia de que os homens desejem ser fascinados, desviados e enganados na esperança confusa de que uma espécie de satisfação hipnótica os fará esquecer, por um instante, o mundo absurdo, cruel e trágico onde vivem.»

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Apesar de não considerarmos ser a melhor opção...

Após o aviso para que «as praxes observassem as condições que garantissem o desenrolar normal e sereno» das mesmas, e tal não se tendo verificado, o Director da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), Carlos Albino Veiga da Costa, tomou a atitude arriscada de determinar «a cessação imediata de toda e qualquer actividade no âmbito das praxes académicas».
O M.A.T.A. já há vários anos que tem vindo a discutir a forma como se deve caminhar para uma universidade livre de praxes e temos chegado sempre à conclusão de que a sua proibição não será a melhor forma.
O autismo encarado por quem as organiza e a incapacidade demonstrada de as tornar mais "aceitáveis" (apesar de terem evoluído nesse sentido) e, igualmente, a incapacidade, por diferentes motivos - distanciamento cada vez maior dos alunos em relação aos órgãos directivos (até por imposição legislativa, através do novo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, do MCTES), associações de estudantes bastante próximas de quem organiza as praxes e, por isso, incapazes de apresentar alternativas às mesmas -, das direcções das faculdades e das associações de estudantes de comunicar com aqueles, serão motivos para que a proibição pareça ser a única solução.
Apesar disso, reconhecemos por parte de algumas direcções e associações de estudantes a tentativa de condicionar a praxe, apresentando, por exemplo, actividade cultural diversificada no início dos anos lectivos, organizando conferências e debates, feiras dos núcleos temáticos de estudantes, festas académicas e pequenos convívios, disponibilizando guias das suas cidades aos novos alunos, etc.
Compreendendo que as praxes, devido ao seu teor intelectual pobre, são de mais fácil "consumo" do que outras actividades que se possam organizar em meio académico, e que por isso terão menos adesão do que as primeiras, parece-nos, no entanto, ser este um dos melhores meios para os fins pretendidos - a integração dos novos alunos e o fim da praxe.

Reproduz-se o despacho que divulga esta decisão:
Despacho n.º 3/2009
No quadro das instruções recebidas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior relacionadas com as praxes académicas, do despacho do Senhor Reitor da Universidade, a Direcção da FEUP lançou um aviso a toda a comunidade académica, sublinhando a obrigatoriedade de todos os estudantes envolvidos nas praxes observarem as condições que garantissem o desenrolar normal e sereno dessas actividades.
Tendo-se verificado, ainda assim, o não cumprimento integral do referido aviso, determino a cessação imediata de toda e qualquer actividade no âmbito das praxes académicas dentro das instalações da FEUP.

Porto e FEUP, 30 de Outubro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Não serão as praxes um fenómeno de bullying universitário?

O bullying é um fenómeno de violência física e psicológica exercida em ambiente pré-universitário. Tem algumas semelhanças com as praxes académicas, embora de uma forma mais extrema e óbvia. Os mais fortes ou os mais velhos exercem esse seu poder sobre os mais fracos ou mais novos. Pela comunidade estudantil, é visto como algo que sempre existiu, portanto natural, e díficil de se evitar. Pela comunidade docente e auxiliar é algo que é passivamente permitido.

Adolescentes resignam-se ao bullying
Violência encarada com normalidade entre os jovens
António Carrapato, Público, 29.Out.09

A maioria dos adolescentes acha que o bullying em contexto escolar "sempre existiu e continuará a existir" e encaram com "pessimismo e resignação" o fenómeno, o que torna difícil uma intervenção eficaz e deixa pouca esperança à sua erradicação. São estas as principais conclusões de uma tese de doutoramento apresentada na Universidade de Granada, em Espanha, e que foi coordenada, entre outros, pela investigadora portuguesa Ana Maria Tomás Almeida, da Universidade do Minho.
Este estudo sobre o bullying foi realizado com uma amostra de 1237 jovens entre os 11 e os 16 anos.

O objectivo deste trabalho foi analisar a perspectiva dos próprios protagonistas do fenómeno relativamente ao bullying, utilizando uma amostra de 1237 jovens entre os 11 e os 16 anos das cidades de Braga, Porto e Granada. O estudo conclui que entre os inquiridos 7,3 por cento são vítimas, 8,5 agressores e 84,1 por cento presenciam actos de violência entre colegas.

Segundo Ana Tomás Almeida, esta "é uma realidade preocupante que justifica uma intervenção". "Há que promover uma consciencialização relativamente a valores sociais fundamentais, como o respeito pelo outro", acrescenta a investigadora.

O estudo refere que a aceitação do bullying como uma rotina e algo natural nas relações sociais entre os jovens é crescente. "Essa indiferença dos jovens face ao fenómeno deve-se sobretudo à banalização e tolerância da violência na escola e na sociedade em geral nas mais variadas situações, nos jogos de vídeo, na televisão, etc", comentou ao PÚBLICO Sónia Seixas, doutorada em Psicologia e autora de uma tese sobre bullying. "Se não existe intervenção por parte de uma figura adulta, há como que um reforço não dito, a atitude agressiva intensifica-se", sublinha Sónia Seixas. E acrescenta: "Este fenómeno surge de uma necessidade de afirmação normal na adolescência; no entanto, o bullying não é normal, essa afirmação pode ser manifestada de formas saudáveis."

O questionário aplicado aos jovens revela que as vítimas de bullying são descritos como pessoas passivas, socialmente incompetentes, ansiosas, depressivas e inseguras; por outro lado, os agressores, são vistos como fortes, extrovertidos e alegres, detentores de um poder e confiança que reforçam o seu carácter de liderança dentro do grupo.

A investigação provou também a existência de algumas diferenças decorrentes do sexo dos jovens no que toca à percepção deste fenómeno. As raparigas tendem a ser mais críticas que os rapazes criando uma maior empatia com as vítimas. A coordenadora portuguesa acrescenta que "de facto as raparigas não participam muito nas formas tradicionais de bullying, mas aderem às vias de pressão indirecta como o ciberbullying, por exemplo".

Segundo o estudo, esta recente forma de agressão aos jovens, utilizando as novas tecnologias como os telemóveis ou a Internet, está a aumentar e, na opinião de Sónia Seixas, "cabe mais aos pais a vigilância nesta matéria, uma vez que é em casa que esta ameaça está mais presente". "Esta é uma situação muito complexa, porque sabemos quem são as vítimas, mas não conseguimos conhecer os agressores."

As conclusões desta investigação permitiram detectar problemas e questões que poderão ser úteis na aplicação de medidas realistas e consistentes no espaço escolar. "Há que perceber o fenómeno, perceber como ele se processa e se forma. A abordagem preventiva deve ser o caminho", refere a professora da Universidade do Minho.

"As soluções poderão passar por uma maior supervisão dos espaços que, se acontece com relativa eficácia nos 1.º e 2.º ciclos, no 3º ciclo, que corresponde ao pico da ocorrência deste fenómeno, na generalidade, praticamente não existe, por outro lado há que apostar numa rígida regulamentação nas escolas, consciencializar os pais de que existe um regulamento disciplinar que deve ser respeitado e que deve ser transmitido aos alunos", remata Sónia Seixas.

De referir que esta tese foi orientada por Maria Jesús Caurcel Cara durante os anos de 2006, 2007 e 2008 e coordenada, para além de Ana Tomás Almeida, por mais dois professores da Universidade de Granada.